Bolsonaro: desordem e retrocesso
Quer Bolsonaro o saiba quer não, o seu regime existe para ser usado por certos interesses financeiros e empresariais multinacionais. Existe para facilitar a rapina económica do El Dorado que é a economia brasileira e, em especial, para garantir e expeditar o desmantelamento e a privatização em massa do sector público brasileiro. Existe também para facilitar esta rapina através do reforço do poder securitário do Estado e, em especial, da instigação de conflitualidade na sociedade (quando as pessoas estão ocupadas com atritos fúteis e divisivos à volta de coisas como identidade sexual e cultural, não estão focadas no que realmente interessa). O regime de Bolsonaro serve ainda, com toda a probabilidade, para envolver o Brasil na dinâmica geopolítica turbulenta que está, a partir de lugares altos, a ser pensada para a América Latina.
1. O Brasil é, de há décadas para cá, um dos países mais estáveis e desenvolvidos da América Latina – não obstante as suas muitas limitações e problemas. O sucesso relativo do Brasil deve-se largamente à existência de um sector público amplo e estável, a abranger vastas redes infraestruturais (que permitem suster desenvolvimento territorial e económico), reservas energéticas e jazidas minerais, territórios, e ainda serviços públicos e sociais com a capacidade de dar alguma forma de resposta aos desequilíbrios sócio-económicos que afectam o país.
É certo que vastos sectores públicos de 2º mundo proliferam ineficiência e corrupção, e o Brasil não é excepção a isto. Porém, convenhamos que é melhor ter um país que funciona, embora a braços com ineficiência e corrupção, que um país que não funciona, porque desmantelou o sector público.
2. A extraordinária riqueza do sector público brasileiro é algo que o torna muito apetecível a certos interesses transnacionais: os mesmos que passaram as últimas 5 décadas a pilhar sectores públicos e economias ao longo de toda a América Latina, mas que nunca conseguiram realmente fazê-lo no Brasil. Para tais interesses, a economia brasileira é o El Dorado, e as várias vertentes do sector público são reluzentes filões de ouro, a confiscar a saldos, partir em tranches, e explorar. Preparam-se agora para o conseguir, com a ascensão deste regime, e de um Bolsonaro ansioso por infligir tal destino ao seu próprio país, na sua sanha pseudo-ideológica de “livrar o Brasil de ‘comunismo’” (comunismo é redefinido, portanto, para significar a existência de um sector público).
3. Pessoalmente, tendo a acreditar que Bolsonaro é um homem ingénuo, incapacitado por confusão ideológica e por desinformação com que é alimentado. Acredito que acha realmente que está a trabalhar para o bem do Brasil, enquanto é cinicamente usado como testa de ferro para uma agenda que o ultrapassa e que não compreende realmente.
4. Bolsonaro alega ser um liberal mas é, na verdade, um neoliberal.
Não é um liberal clássico, alguém interessado no avanço das liberdades e direitos naturais do indivíduo humano e, como tal, na criação de uma economia descentralizada de classe média, e no avanço e uso do sector público para garantir progresso económico e bem-estar geral.
Bolsonaro é um neoliberal, ou seja, alguém que fala de liberdade para lhe dar mau nome. Em essência, é alguém que explica que ‘a mão invisível do mercado’ (leia-se, capital consolidado transnacional) deve ter a máxima liberdade para fazer tudo o que queira, e para guiar a sociedade para os amanhãs cantantes da utopia de mercado. A economia deve ser transformada num espaço desregulado onde o ‘mercado’ é livre de desmantelar e privatizar ao preço da chuva, ‘reajustar’ standards laborais e o nível de vida, cartelizar, pilhar recursos e populações. Aparentemente, tudo isto gerará prosperidade e classes médias – porquê, como, quando? – e, tudo o que se exclua a isto é, de alguma forma, um sintoma malignante de ‘comunismo’.
5. Como bom neoliberal que é, Bolsonaro exige ainda que o aparelho securitário do estado tenha o direito de manter a sociedade ‘na linha’, em tal utopia de liberdade.
Exige também que a polícia tenha o mais total direito a matar pessoas e a executar marginais na via pública – ou seja, quer o regresso dos esquadrões da morte.
6. Sob o regime de Bolsonaro, a propriedade pública foi feita para ser privatizada: recursos naturais, territórios e infraestruturas são caça limpa para rapina. Isto inclui vastas tranches da Amazónia. Com efeito, está-se agora abertamente às portas da aceleração dramática da desflorestação do pulmão do planeta, em nome da exploração de minérios e da proliferação de latifúndios para a plantação de soja geneticamente modificada e outros venenos transgénicos.
Em tudo isto, é agora dito às poucas tribos indígenas que restam que deveriam abdicar das suas terras ancestrais (boas para exploração e lucro). É-lhes até dito que deveriam ponderar o abandono dos seus costumes milenares em prol de ‘assimilação’ – ou seja, estandardizaçãocultural e sócio-económica, já que é isto que significa. Bolsonaro tenciona, portanto, protagonizar mais um episódio numa das narrativas essenciais dos últimos 200 anos, a extinção gradual das culturas independentes e auto-determinadas ao longo do planeta, na marcha lenta para uma qualquer monocultura global.
7. Ao mesmo tempo, serviços públicos como a saúde e a educação estão a mais e têm de ser purgados, desmantelados e privatizados. Desregulação em serviços e em preços tem de ser acompanhada por desregulação laboral. O cidadão médio terá menos rendimentos, e pagará cada vez mais por serviços privatizados de qualidade declinante. E, terá de continuar a pagar impostos para manter os acordos público-privados e o aparelho de segurança a funcionar. Porém, é ‘imoral’ que bancos, corporações e multimilionários paguem os impostos que pagam, e que haja segurança social para ajudar os pobres, pelo que isso também tem de ir.
Há todo um mundo de precariedade e de convulsões sócio-económicas à espera.
8. Uma das valências essenciais do regime de Bolsonaro é a instigação de conflitualidade social à volta de questões fúteis e divisivas, relacionadas com identidade sexual e cultural e, mais cedo ou mais tarde, com etnia, raça, religião, etc. Em simultâneo, há o cultivo de paranóia, extremismo e mentalidade miliciana à volta do problema da criminalidade convencional e do crime de rua. Quando a estas coisas são acrescentados os traumas sócio-económicos já bem latentes na sociedade brasileira, e que tenderão a agravar-se daqui em diante, têm-se os ingredientes para algo que pode vir a expressar-se na forma de uma espiral continuamente crescente de conflitualidade, que pode até vir a assumir a forma de uma guerra social. Isto é algo que convém cultivar, já que, enquanto as pessoas estiverem ocupadas com atricções mútuas, e com desconfiança e ódio mútuo, e enquanto estiverem agarradas às gargantas dos vizinhos, não estarão a prestar atenção ao que realmente conta – a rapina económica do país. Dividir para reinar.
Nisto, é também aberta a porta à ressurreição de terrorismo de extrema-esquerda, com o retorno das milícias fanonistas e colectivamente insanas do MST – sob o slogan de “combater fascismo”. Isto, claro, estimulará milicianismo de extrema-direita, para agravar ainda mais a situação.
9. Existe, neste mundo, uma facção oligárquica muito importante, sedeada essencialmente em Londres e NY, e nos centros financeiros, institucionais e aristocráticos da Europa Continental. Esta facção exerce, de há décadas para cá, enorme poder sobre os mercados globais e, por conseguinte, sobre o panorama económico, político e geopolítico do mundo – incluindo da América Latina.
10. A facção mencionada tem um novo jogo de xadrez geopolítico em mente para a América Latina. O jogo é, de certa forma, um regresso melhorado ao jogo dos anos 70 e 80, e é jogado pelas regras da turbulência geopolítica. Está já hoje a ser jogado na Venezuela, e é algo como o que se segue.
Divide-se o tabuleiro de xadrez em dois campos genericamente adversariais, um de regimes bolivarianos e o outro, de ‘democracias corporatistas’. As ‘democracias’ estão alinhadas com certas potências, os regimes bolivarianos com outras potências. As potências manietam esses países. Os países são usados uns contra os outros e são desestabilizados a partir de fora. Instabilidade económica leva a instabilidade sócio-política e, aqui e ali, a golpes e mudanças de regime. A precariedade e a conflitualidade social aumentam. Seres humanos procuram melhores horizontes, e envolvem-se em migrações em massa, que se fazem sentir ao longo de toda a região – influxos humanos para àreas já desgastadas tendem a agravar as coisas.
Ao mesmo tempo, o sector informal torna-se ainda mais importante, a coca flui livremente, e flui para criar solvência e fluidez nos mercados financeiros.
Narcoterroristas controlam àreas inteiras. Forças especiais conduzem operações de contrainsurgência contra actores irregulares, o que inclui movimentos sócio-políticos, guerrilhas armadas e grupos indígenas. Mais à frente, forças armadas são usadas em operações de estabilização de territórios e de populações.
Tudo isto facilita pilhagem económica e privatização em massa de recursos, infraestruturas, e territórios – depois securitizados com mercenários, e geridos no registo neocolonial já hoje habitual em àreas da própria América Latina e, especialmente, em África.
11. A dita facção oligárquica gostaria que o Brasil desenvolvesse capacidades militares bastante razoáveis e que surgisse a liderar Chile, Colômbia, Argentina e as outras ‘democracias corporatistas’ neste novo jogo. É possível que o Brasil de Bolsonaro e sucedâneos se deixe levar. Porém, o Brasil também tem o potencial e o espírito para não se deixar levar e, com efeito, para frustrar os desígnios desta facção, e para incentivar o resto da região a fazer o mesmo, na direcção de desenvolvimento e liberdade – real liberdade.
NOTA. Este artigo está a ser escrito apenas uns dias depois de Julian Assange ter sido detido e condenado a um ano de prisão na Grã-Bretanha. É agora expectável a extradição de Assange para os EUA, que o querem punir pelo facto de ter usado a WikiLeaks para excelente jornalismo de investigação, com a exposição de inúmeros casos de corrupção, abuso de poder e crimes de guerra, por pessoas e interesses ligados ao governo federal americano. É, portanto, alguém a ser tratado como um ‘inimigo do Estado’, pelo país que, em tempos cada vez mais distantes, até foi o país-berço de democracia constitucional moderna.
Assange tem sido o alvo de uma das mais grotescas campanhas de assassinato de carácter da nossa era. É preciso ter em consideração que, nestas coisas, o assassinato de carácter precede, e serve para abrir as portas a, medidas mais activas, como sejam detenção (acabou de acontecer), tortura e desorganização psicológica e, ocasionalmente, assassinato literal (como seja, ser ‘suicidado’). É razoável temer, a todos os níveis, pela vida e pela segurança de Julian Assange.
Rui Miguel Garrido