Diante das notícias sobre o atentado terrorista na catedral de Nice, volta a surgir a perplexidade diante de uma tão chocante manifestação de ódio e desumanidade praticada em nome de Deus e de uma religião. Como é isso possível? Será isso próprio de uma religião determinada, ou da religião em geral? Não deveriam as religiões servir para a elevação moral da humanidade e a construção da paz?
Para responder a esta questão, pareceu-me de grande interesse um pequeno livro recentemente publicado, da autoria de Adrien Candiard, dominicano e professor do Instituto Dominicano de Estudos Orientais do Cairo: Du Fanatisme (Les Éditions du CERF, 2020).
Adrien Candiard parte também (procurando dar-lhe uma explicação) de um episódio chocante: o assassinato, por suposta apostasia, de um muçulmano que desejou “boa Páscoa” aos seus amigos cristãos. Encontrou uma pretensa justificação para esse ato num teólogo muçulmano do século XIV, Ibn Taymyya, expoente da corrente hanbalista. Para esta corrente, a absoluta transcendência de Deus leva a que desconheçamos por completo a sua natureza e a que com Ele não tenhamos uma qualquer relação pessoal. O que sabemos é apenas o que Ele nos manda fazer e, por isso, podemos forçar, até com a violência, qualquer pessoa a fazer o que Ele quer. Adrian Candiard caracteriza esta visão como “agnosticismo piedoso”. Trata-se, certamente, de uma corrente marginal do Islão, mas é ela que justifica a opinião desse teólogo.
Uma primeira tese central do livro é a de que o fanatismo religioso não tem a sua explicação principal na psicologia (uma doença da mente, como consideravam Voltaire e outros iluministas franceses) ou na sociologia (uma reação à privação económica e à marginalização social), mas na própria religião, como uma sua patologia.
Essa patologia pode atingir todas as religiões, incluindo a cristã, como o demonstram algumas atitudes próprias do fundamentalismo evangélico ou do integrismo católico.
Outra tese central do livro é a de que o fanatismo não corresponde a uma maior intensidade da vivência religiosa. Não é verdade que quanto mais intensa tal vivência, maior o fanatismo, a violência e a intolerância. Não se trata de viver mais radicalmente a religião, como o fizeram São Francisco de Assis, São Vicente de Paulo ou Santa Teresa de Calcutá, que não eram fanáticos, mas também não eram “moderados”. Não é a “moderação” que se contrapõe ao fanatismo (apesar de se designarem habitualmente como “moderados” os muçulmanos que rejeitam a violência e a intolerância). Pelo contrário, o fanatismo corresponde a uma postura que elimina Deus, substituindo-O por ídolos, ídolos que podem até facilmente confundir-se com Deus, porque d´Ele se aproximam, mas não são Deus. Esses ídolos preenchem o vazio da ausência de Deus. O fanatismo é uma idolatria e, por isso, um “ateísmo religioso”.
Esses ídolos que podem confundir-se com Deus, mas não são Deus, podem ser ritos, mandamentos, uma moral ou uma identidade religiosa determinada. O que caracteriza o fanatismo é a apropriação e manipulação de ídolos para servir interesses e paixões pessoais. Ao contrário desses ídolos, Deus não se deixa manipular e não pode ser instrumentalizado em função de quaisquer interesses e paixões.
Diz o autor do livro: «Aqui começa o fanatismo: quando quero fazer entrar o infinito de Deus na estreiteza das minhas ideias, dos meus entusiasmos ou dos meus ódios; quando perco de vista que Ele é maior do que eu, que Ele está para além dos combates para que O quero mobilizar, e que, pelo contrário, é a Ele que cabe conduzir-me onde Ele me quer».
E evoca o pensamento de Blaise Pascal: «…a verdade fora da caridade não é Deus (…) é um ídolo que não deve ser amado, nem adorado».
A solução para o fanatismo não passa por eliminar a religião. Prova-o a experiência das ideologias secularistas, que, no século XX, também deram origem a fanatismos mortíferos. O vazio de Deus pode ser preenchido por ídolos seculares: o progresso, a história, a classe, a raça, o planeta.
Sendo o fanatismo uma doença da religião, é na própria religião que pode encontrar-se o seu antídoto. Por isso, é duvidoso que os esforços de “desradicalização” dos extremistas islâmicos sejam frutíferos sem essa dimensão; é duvidoso que uma sociedade secularista contenha os instrumentos necessários para combater uma doença da religião.
O antídoto ao fanatismo passará, então por uma verdadeira conversão espiritual (que não significa mudar de religião), pelo aprofundamento da relação pessoal com Deus. No âmbito muçulmano, pela adesão a correntes abertas a essa dimensão. E também pelo diálogo inter-religioso, encarado não como ocasião de afirmação de identidades contrapostas, mas como uma ocasião de partilha de experiências de relação pessoal com Deus, Deus que não me pertence e que não posso manipular.
As teses deste livro em grande medida ajudam a explicar os fenómenos de fanatismo religioso. Mas parece-me que ainda não explicam tudo. Isto porque entre o fanatismo dos fundamentalistas evangélicos que interpretam literalmente a Bíblia, ou dos integristas católicos que absolutizam um determinado rito litúrgico, por um lado, e o fanatismo de quem pratica o terrorismo em nome de Deus, por outro lado, há uma diferença que não é apenas de grau, mas substancial. Entre esses extremos, também há o fanatismo próprio de algumas das chamadas seitas, também diferentes entre si. Essa diferenças e esses fenómenos extremos pedem ainda – no meu modesto parecer – uma mais aprofundada explicação.
Pedro Vaz Patto