Tinha 23 anos quando descobriu que era possível usar os contos de tradição oral como estratégia de promoção e mediação do livro e da leitura. Viciou-se e soube que era aquilo que queria fazer da vida: contar histórias.

Jorge Serafim, em entrevista exclusiva ao Distritonline, assume que, apesar de ter-se popularizado através do programa de televisão “Levanta-te e Ri”, não se considera humorista.

O contador de histórias, natural de Beja, lançou recentemente o romance “Não há seda nas lembranças”. Todavia, garante que não sabe se gostava de “viver da escrita”, uma vez que viver da escrita faz com que os autores percam as explosões criativas que os levam a pegar na caneta e escrever.

 

Distritonline [DO]: Como nasceu o interesse pela escrita?

Jorge Serafim [JS]: Nasci com ele, tanto quanto me lembro. A escrita sempre foi uma necessidade, porque habituei-me a falar com a caneta e o papel. Contudo, mais do que uma necessidade, a escrita é, efetivamente, uma companheira.

DO: Depois dos poemas, dos contos e das peças de teatro, estreia-se agora no romance, com Não Há Seda nas Lembranças. Escrever um romance era um objetivo?

 JS: É um romance, mas é um romance cruzado por muitas histórias, histórias que contei e que ouvi contar ao longo dos quase 20 anos que levo como contador de histórias. No livro, queria contar a história da Guerra Civil Espanhola, no entanto queria ser, sobretudo, fiel à oralidade e não pretendia, de forma alguma, transformar a obra numa investigação exaustiva sobre esse episódio.

Por isso, imaginei um prédio no qual cada vizinho é um ‘vivenciador’ de uma das histórias que queria contar, depois cozinhei tudo na mesma panela de pressão.

DO: Qual foi a grande fonte de inspiração para redigir este livro?

JS: O meu pai, a cidade de Beja, o bairro social onde cresci, os contos populares e a imaginação. O livro parece, à primeira vista, realista, mas não é, tem muitos episódios surreais.

A escrita tem esta particularidade extraordinária de colorir o dia-a-dia, de permitir-nos escorrer o que vai dentro de nós pelos dedos e, no sentido mais lato, pela própria alma.

DO: Na obra, há uma avó que resolve os medos contando contos. Escrever contos e contá-los é, para além de uma profissão, uma terapia?

JS: Para mim é, porque eu não vivo da escrita. Mas, sinceramente, neste momento não sei se queria viver só da escrita. Viver da escrita torna-nos, de certo modo, mecanizados, perdemos aquelas explosões criativas que obrigam-nos a pegar na caneta e escrever.

DO: O humor que coloca, habitualmente, no que escreve é uma forma subtil de colocar as pessoas a refletir e a questionar sobre o mundo?

JS: Sim, mas eu não coloco humor em tudo o que escrevo. No livro Não Há Seda nas Lembranças há episódios que têm comicidade, no entanto também há episódios verdadeiramente trágicos. Ainda assim, o humor é uma maneira subtil de chegar às pessoas, mas não o faço de forma propositada, sou assim.

DO: É preciso encontrar a comédia mesmo nos momentos trágicos?

JS: Sim. No meu caso, o humor é uma terapia, alivia-me. A verdade é que há coisas trágicas, no entanto nós não temos corpo para viver de manhã à noite, todos os dias, a tragédia, dessa forma abdicamos de viver a vida e, nesse sentido, o humor é uma forma de ultrapassar as pedras que a vida coloca no nosso caminho.

DO: Existem diferenças entre o Serafim contador de histórias e o Serafim humorista?

JS: Eu, sinceramente, gosto mais do Serafim contador de histórias, porque os contos que eu escolho contar falam de mim, revejo-me neles e, sinceramente, o humor assusta-me.

Eu não me considero humorista, até porque eu não sinto essa necessidade de estar constantemente a fazer rir os outros. Quando as pessoas assumem, claramente, que são humoristas, os outros estão sempre à espera de uma piada, de uma graça… No entanto, nós temos direito a sofrer, a ter as nossas cargas dramáticas e, por vezes, temos inclusivamente necessidade de partilhá-las durante os espetáculos.

DO: Mas essa capacidade de fazer rir é uma característica inata?

JS: Eu acredito que sim. Nunca senti a necessidade de tirar um curso, de formar-me, de desenvolver as minhas características mais ligadas à comédia e ao humor. Admiro, sinceramente, quem escolhe o humor como profissão e procura, diariamente, criar algo novo. No entanto, no meu caso é uma característica inata, tal como a capacidade de contar e de escrever histórias.

DO: Não gosta de anedotas devido às sistemáticas piadas sobre os alentejanos?

JS: Claro. Existem algumas anedotas que aprecio, porque são histórias engraçadas e caricatas. Não gosto é desse caminho que revela uma certa descriminação porque as pessoas são loiras, negras, alentejanas… Por mais que digam que é para rir, na minha opinião não é positivo, porque no fundo há ali uma intenção, ainda que pequena, de diminuir o outro e pode-se, facilmente, fazer rir sem diminuir ninguém.

DO: E é esse humor que o apaixona?

JS: Sem dúvida. Por exemplo, quando vou às escolas contar contos falo sempre da sociedade da imagem, que prega-nos, constantemente, mentiras e como o mundo das palavras é o único que a questiona. E falo destes temas com algum humor, porque o humor permite-nos quebrar barreiras e estabelecer relações de confiança. Os adolescentes assumem à partida que um contador de histórias é uma coisa de ‘putos’ e para transpor essa barreira é preciso, primeiramente, conquistá-los.

DO: O contador de histórias deve ser, especialmente, um observador?

JS: O contador de histórias tem de ser capaz de trabalhar em contextos de intimidade e vive, maioritariamente, despido de artefactos. Porém, há bons espetáculos de contadores de histórias que utilizam o palco, as luzes, os cenários, os adereços… Eu, pessoalmente, prefiro o cru e o duro, porque, atualmente, o que mais há são coisas que desviam a nossa atenção.

DO: É fácil despir-se perante um público que não conhece?

JS: Eu não me dispo. Eu faço pesquisas, oiço outros contadores, leio livros e só conto o que gosto. Os contos abrem-me portas, esclarecem-me dúvidas, ensinam-me a lidar com os medos, com as angústias, com as aspirações…

DO: Se não fosse humorista ou contador de histórias o que seria?

JS: Eu sempre andei errado na vida (risos). Primeiro fui para mecânica, mas nunca gostei de mecânica, queria ser professor primário. Posteriormente entrei na universidade para estudar História, aborreci-me e decidi ir trabalhar para a Biblioteca de Beja. E foi quando fui trabalhar para a biblioteca, com 23 anos, que descobri esta vertente de utilizar o conto de tradição oral como estratégia de promoção e mediação do livro e da leitura e consequentemente comecei a conhecer mais pessoas deste mundo e apaixonei-me por esta arte.

DO: O que guarda de mais importantes nestes 20 anos de carreira?

JS: Guardo, sobretudo, as pessoas que conheci que trabalham nesta área, designadamente no Brasil e na Argentina, pessoas que são autênticos sábios que ajudam-nos a compreender este mundo, a não irmos em cantigas, o respeito pela diferença e pela diversidade cultural, a importância da leitura e a procurar nas semelhanças outros caminhos. Atualmente, as pessoas fazem da ignorância o seu porta-estandarte, muitas vezes sem sequer perceberem que estão a fazê-lo. Estamos rodeados de imagens, todos nós temos redes sociais, telemóveis, tabletes, produtos de marca e, nesse sentido, trabalhar numa atividade que lida apenas com as palavras é uma bênção.

DO: A palavra é, portanto, a mais poderosa das armas?

JS: Sem dúvida. A imagem manipula e tem, inclusivamente, a capacidade de deturpar mil palavras. Nós somos verdadeiramente críticos e interventivos quando começamos a questionar a imagem, seja ela verdadeira ou não, porque a partir daí começamos a trabalhar o pensamento, a investigar, a ler, a procurar, a falar com o outro. Como um dia disse Saramago, o Homem só escreve com as palavras que conhece.