JULIAN ASSANGE é, claro, o fundador da WikiLeaks, o serviço online dedicado à publicação de documentos a comprovar corrupção institucional e crimes de grande escala. Assange está hoje detido numa prisão britânica, no contexto de um processo de extradição que lhe foi movido pela Administração Trump, e ao qual Biden está, por enquanto, a dar continuidade. Os EUA estão, através deste processo, a acusar Assange de um número de crimes, e a exigir a sua extradição para solo americano, onde pode vir a ser condenado a uma pena que pode ir até aos 175 anos de prisão. No passado dia 4 de Janeiro, um tribunal britânico decidiu contra aextradição. Porém, os EUA estão a apelar da decisão, e Assange continua detido, à espera do veredicto final. É essencial que as acusações sejam anuladas, e que Assange possa, de uma vez por todas, sair em liberdade.
‘A CRUCIFICAÇÃO PÚBLICA DE JULIAN ASSANGE e o Futuro da Democracia e do Jornalismo’ é uma curta metragem por mim produzida e recentemente publicada no YouTube, em https://www.youtube.com/watch?v=FlQlMI2e3aE&t=10s. Documenta a história de Assange e da WikiLeaks, e aborda as acusações que estão hoje a ser movidas, não só contra Assange, mas também contra o próprio jornalismo de investigação. E, é um apelo a Biden para que anule essas acusações, tal como é um apelo à imediata libertação de Julian Assange. Gostaria de encorajar os leitores a assistirem a esta curta metragem e, se possível, a divulgá-la junto de amigos e conhecidos—e, em especial, de quaisquer jornalistas ou responsáveis políticos que possam conhecer. O tema justifica-o plenamente.
As acusações movidas pela Administração Trump contra Assange referem-se à publicação, em 2010/1, de centenas de milhares de documentos governamentais americanos pela WikiLeaks. Estes materiais, muitos dos quais foram publicados em parceria com grandes jornais internacionais (New York Times, Guardian, Der Spiegel), vieram documentar, entre outras coisas, as práticas em Guantanamo Bay, e a perpetração de tortura e de crimes de guerra no Iraque e no Afeganistão. A publicação destes materiais envolveu a autenticação, análise e publicação de inúmeros itens documentais, e foi um dos mais notórios empreendimentos jornalísticos de sempre. E, foi algo que nunca foi perdoado: o presente processo contra Assange é uma expressão pungente disso mesmo.
A PERSEGUIÇÃO JUDICIAL DE ASSANGE tem sido descrita, por múltiplas organizações de imprensa e de direitos humanos, como uma extraordinariamente grave ameaça à liberdade de expressão e de imprensa no mundo. A Amnistia Internacional qualificou-a como nada menos que “um ataque frontal à liberdade de expressão”, e múltiplas organizações, como sejam os Repórteres Sem Fronteiras e a Federação Internacional de Jornalistas, mobilizaram-se em defesa de Assange, e apelaram à sua imediata libertação.
Os EUA estão a acusar Assange de 18 crimes, todos eles à volta da publicação dos documentos em 2010/1. Uma das acusações é a de alegadamente ter ajudado Chelsea Manning a fazer hacking de sistemas. Manning é a analista militar que enviou os documentos à WikiLeaks. As 17 restantes acusações são de espionagem. É alegado que Assange estaria a envolver-se em espionagem contra os EUA, e não a praticar qualquer forma de jornalismo, quando obteve e publicou informação confidencial de Estado. Porém, obter e publicar informação confidencial de Estado é algo que é uma prática essencial, até indispensável, em jornalismo de investigação. Se esta prática for criminalizada por meio do precedente que será estabelecido por uma condenação de Assange, então muito do jornalismo de investigação será tornado impossível.
Assange está a ser acusado de espionagem pelo seu “envolvimento” em práticas que são puramente jornalísticas, como sejam: encorajar uma fonte (Manning) a disponibilizar informação confidencial; proteger o anonimato da fonte; publicar a informação.
É preciso compreender que estas práticas não só não são criminosas, como são práticas essenciais em jornalismo. Ao recorrer às mesmas, Assange estava meramente a usar métodos convencionais em jornalismo de investigação. Como explicado neste artigo, publicado pelo New York Times, “é difícil distinguir legalmente entre muito do que Assange faz na WikiLeaks, e o que organizações noticiosas convencionais como o próprio [NY] Times fazem”. Acusar Assange de espionagem “pode abrir a porta à criminalização de actividades que são cruciais” à investigação jornalística.
A ADMINISTRAÇÃO TRUMP OPTOU por se envolver em algo nunca antes visto nos EUA quando acusou Assange de espionagem por publicar materiais governamentais. Até aí, já tinha havido uma mão cheia de casos em que funcionários governamentais foram acusados de espionagem por cederem informação confidencial a jornalistas. Porém, isto nunca tinha sido feito contra os própriosjornalistas. Hoje, está a ser feito a Assange, um jornalista não-convencional. Amanhã, pode ser feito a qualquer repórter convencional, ou a quaisquer média no palco internacional.
Com efeito, se Assange for condenado por espionagem, isso significa que, de futuro, o mesmo poderá ser infligido a quaisquer jornalistas convencionais, em retaliação pelas mesmas exactas práticas pelas quais Assange está hoje a ser acusado. É isso mesmo que é afirmado por mais de 20 organizações de liberdade de imprensa e direitos humanos (como sejam Human Rights Watch, ACLU e Index on Censorship), numa carta à Administração Biden. E, significa também que o precedente Assange pode vir a ser usado, pelos EUA, para perseguir jornalistas onde quer que seja no mundo. A própria Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa determinou recentemente que o caso Assange pode vir a ameaçar as liberdades dos jornalistas em todos os estados-membro.
Ao mesmo tempo, o caso Assange pode tornar-se também numa poderosa indicação de laisser faire para regimes repressivos ao longo do mundo. E, claro, num modelo para governos que pretendam punir os média pela publicação de factos incómodos. Hoje em dia, os jornalistas já são uma das classes mais perseguidas ao longo do mundo, e as coisas só tendem a piorar.
A PRÓPRIA ADMINISTRAÇÃO OBAMA nunca escondeu a sua inimizade para com Assange e a WikiLeaks. Porém nunca chegou ao ponto de levantar acusações formais contra Assange. Os motivos para isto são publicamente conhecidos. Primeiro, porque seria anti-constitucional: uma violação da liberdade de expressão e de imprensa. Segundo, porque acusar Assange implicaria acusar também todos os outros jornalistas e publicações que colaboraram com a WikiLeaks nas publicações de 2010/1, o que inclui organizações tão poderosas como New York Times e Guardian. Terceiro, porque seria uma afronta contra o jornalismo em si.
Depois, veio a Administração Trump, que escalou a guerra contra Assange e a WikiLeaks, e optou por se tornar na primeira Administração de sempre a criminalizar a publicação de documentos confidenciais. A guerra da Administração Trump contra Assange pareceu, de resto, expressar a sua hostilidade geral para com os media e para com a imprensa. Esta, afinal, foi uma Administração cujo próprio Presidente rejeitou sistematicamente qualquer forma de escrutínio mediático, rotulando notícias incómodas como “fake news”, e chegando ao ponto de se referir aos media como “inimigos do povo”.
EM JOGO NO CASO ASSANGE, A CAPACIDADE DA IMPRENSA PARA SER A IMPRENSA: ou seja, para obter e publicar informação de interesse público e, dessa forma, manter o público informado, e o poder, e os abusos do poder, em xeque. Por outras palavras, a capacidade da imprensa para ser o pilar essencial da democracia e, dessa forma, salvaguardar essa democracia.
A HISTÓRIA DE JULIAN ASSANGE É TAMBÉM a história da sua crucificação pública. Essa crucificação foi despoletada na sequência das publicações de 2010/1, com o lançamento de uma das mais ferozes campanhas internacionais de sempre, contra Assange e a WikiLeaks. Ao longo dessa campanha, e durante a última década, Assange foi alvo de uma torrente interminável (e, com efeito, deliberada, e pensada, e concertada), de calúnias, insultos, desumanizações, humilhações. Foi objecto constante de ódio e de ridículo público, de ameaças e intimidações. Foi colocado sob a atenção permanente de forças demasiado poderosas; e, claro, viu a sua vida pessoal ser devassada e destruída de todas as formas possíveis. Uma parte de tudo isto foram os 7 anos de asilo diplomático na Embaixada do Equador, em Londres: e a existência confinada, claustrofóbica, monitorizada, e vexante, que teve de levar nesse espaço. A situação foi agravada pela ascensão do regime de Lenin Moreno no Equador: aparentemente (e segundo múltiplos testemunhos para esse efeito), Moreno, abertamente alinhado com a política externa de Trump, fez tudo ao seu alcance para tornar muito desconfortável a estadia de Assange na Embaixada. E, finalmente, em Abril de 2019, revogou ilegalmente o asilo, em violação da Convenção de Genebra para os Refugiados, e permitiu à polícia britânica que entrasse na Embaixada para proceder à captura de Assange. Assange foi detido sob uma acusação menor de quebra de fiança em 2012, e, em essência, a pedido da Administração Trump, no contexto do processo de extradição para os EUA.
ASSANGE FOI ENCARCERADO EM BELMARSH, onde permanece até hoje. Belmarsh é uma prisão de máxima segurança, pensada para terroristas e criminosos violentos. É aqui que está detido Julian Assange, para efeitos de um mero processo de extradição. É preciso notar que Assange, que é um homem bom a trabalhar em prol de um mundo melhor, tem sido tratado pior, pelo UK, que Pinochet, o ditador fascista do Chile, que quando foi preso em Londres, em 1998, teve direito a prisão domiciliária numa mansão no Surrey, junto a um clube de golfe.
Segundo testemunhado por pessoas próximas, Assange é diariamente confrontado com condições profundamente degradadas e doentias, o que está a resultar na sua rápida deterioração física e psicológica. A situação de Assange tem sido acompanhada por Nils Melzer, o Relator Especial de Tortura para a ONU. Melzer visitou Assange em Belmarsh em Maio de 2019 e encontrou-o gravemente debilitado. Isto, explica Melzer, deve-se ao ambiente extremamente hostil ao qual Assange tem sido exposto por muitos anos, e que tem sido caracterizado por “abuso persistente e progressivamente mais severo… deliberado e concertado”, e a incluir coisas como “isolamento”, “perseguição colectiva”, “mobbing, intimidação, e difamação”, e ainda a “instigação aberta de violência”. O relator da ONU apontou ainda que Assange apresenta todos os sintomas de tortura psicológica: algo que resulta de ter sido “deliberadamente exposto, por um período de vários anos, a formas progressivamente mais severas de tratamento cruel, inumano ou degradante”.
Isto é corroborado por um conjunto de médicos britânicos, que, em cartas ao jornal médico Lancet, denunciam que, na prisão, Assange está a ser exposto a negação de cuidados de saúde, e, mais que isso, a condições de tortura psicológica. Explicam que há a séria possibilidade de que Assange venha a morrer na prisão, e constatam que, se isso acontecer, então terá sido torturado até à morte.
BALTASAR GARZÓN, o lendário juiz espanhol que fez carreira a perseguir corrupção e crimes contra a Humanidade, é hoje o líder da equipa legal da WikiLeaks. Diz aquilo que tem de ser ditoquando diz que “o jornalista e fundador da WikiLeaks foi tratado de forma inumana, por forças poderosas e omnipresentes que, por todos os meios, tentaram calá-lo, neutralizá-lo, e acabar com ele. Matar o mensageiro foi sempre o recurso dos malvados, dos delinquentes. O silêncio é a medicina que aplicam, na crença de que, assim, os seus pecados não verão a luz.”
O PROFESSOR NILS MELZER, da ONU, acrescenta que“Assange foi sistematicamente caluniado para desviar as atenções dos crimes que expôs”. Foi “desumanizado… tal como as bruxas que costumávamos queimar na fogueira”, o que tornou “fácil deprivá-lo dos direitos mais fundamentais sem que isso provocasse indignação pública”. Por outras palavras, a técnica clássica, tantas vezes usada ao longo da História, do uso de mentiras e calúnias para dar cobertura à perseguição organizada de um grupo ou de uma pessoa. Hoje, como ontem, a destruição de imagem é sempre aquilo que abre as portas à destruição desse grupo ou dessa pessoa.
E, ultimamente, à destruição da democracia.
Como notado por Melzer, com o caso Assange “está a ser estabelecido um precedente legal, que, de futuro, será usado com a mesma facilidade” para perseguir e punir qualquer outro jornalista ou publicação. Isto “poderá selar o futuro da democracia ocidental”, e criar uma situação em que “dizer a verdade terá sido tornado num crime, enquanto os poderosos usufruem de impunidade.” Nesse ponto, “teremos rendido a nossa voz à censura, e o nosso destino a tirania irrestrita.”
E, é claro que em larga medida isto já está a acontecer—e não pode ser deixado acontecer.
A AQUIESCÊNCIA À DESTRUIÇÃO DE UM HOMEM BOM é a aquiescência à destruição da liberdade e, com efeito, à destruição de tudo aquilo que faz da sociedade, humana e civilizada. Aquiescência não é uma opção; silêncio não é uma opção.
É de responsabilidade de cada um de nós falar em nome de Julian Assange: que tem de ser prontamente libertado e, com efeito, indemnizado pelos males sofridos. Acima de tudo, faça-se Joe Biden ver que tem o dever de anular definitivamente as acusações da era Trump contra Assange, e, desta forma, afirmar os valores da democracia e da transparência.
Rui Garrido
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