TOMAZ SALOMÃO, figura proeminente na política moçambicana, e antigo secretário-geral da Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC), disse, recentemente, em entrevista à Televisão de Moçambique, que o terrorismo em Cabo Delgado está a ser organizado por interesses externos investidos no sector energético, para sabotar a entrada de Moçambique no mercado do gás natural. Nas palavras de Tomaz Salomão, «Moçambique não faz parte do clube dos grandes produtores e exportadores… é um jovem que se quer atrever a entrar neste jogo. Os donos do jogo estão a dizer e a transmitir basicamente a mensagem seguinte: olha, entrares aqui não vai ser fácil… a entrada para este banquete custa, e vai-te custar caro».

Esta é uma afirmação essencial, e que coloca em perspectiva a insurgência em Cabo Delgado, e a facilidade com que a mesma se tem vindo a desenrolar ao longo da região, perante a incapacidade comparativa das forças governamentais para lhe fazer frente. A intervenção de interesses externos dotados de poder e de meios é algo que certamente viria facilitar e expeditar a criação de uma insurgência terrorista com sucesso. Uma tal intromissão externa tem de ser contrariada o quanto antes: Moçambique tem serviços secretos, e este é o tipo de propósito a dar a serviços secretos. De resto, o governo moçambicano tem de tornar públicas, o quanto antes, quaisquer informações relevantes que tenha, sobre o envolvimento de actores externos. Informações deste tipo não devem ser escondidas e sonegadas, para uso eventual em tradeoffs políticos: essa é a estratégia dos perdedores e das vítimas aquiescentes. Tais informações devem ser reveladas ao mundo. E, a partir do momento em que o país o faça, pode ter a certeza de que contará com intenso apoio popular ao longo do globo.

O GÁS NATURAL é essencial ao futuro de Moçambique, e ao desenvolvimento de Moçambique. É muito importante que o país nunca se deixe persuadir do contrário, e que nunca ceda a pressões intoleráveis.

As capacidades de produção de gás natural liquefeito (GNL) têm de ser plenamente desenvolvidas, e convém que a produção seja diversificada para incluir GTL, metanol, fertilizantes, GPL, energia eléctrica, etc. O gás moçambicano pode e deve ser exportado às dezenas de milhões de toneladas por ano, tal como pode e deve ser usado para energizar e avançar a própria economia moçambicana.

E, com efeito, a economia regional.

Eu, pessoalmente, sou um grande fã da ideia de uma pipeline com ramificações para distribuir gás natural ao longo da África Austral: Malawi, Zimbabwe, Zâmbia, África do Sul, Eswatini, talvez outros. Isto seria óptimo para criar desenvolvimento industrial e infraestrutural ao longo da região, e para tirar populações da miséria. Até já existe um projecto com estas linhas gerais, o projecto para uma African Renaissance Pipeline, e vale certamente a pena olhar para ele, e para a ideia de distribuição regional de gás natural. Porque é que recursos africanos hão-de ser quase sempre exportados a baixo custo para outros continentes? Não será apenas justo que recursos africanos sirvam, antes de mais, para criar desenvolvimento africano?

O CONFLITO EM CABO DELGADO tem de ser resolvido o quanto antes, e cooperação internacional parece ser crucial para que tal aconteça. Até aqui, o governo moçambicano tem diversificado as suas opções, o que é sensato. A SADC vai mobilizar uma missão militar para o terreno, os EUA já lá estão, Portugal vai liderar uma missão da UE na região, o Ruanda fará as vezes da França na protecção dos projectos de GNL, e a própria França já afirmou a sua disponibilidade para mobilizar a Marinha francesa para operações de segurança marítima ao largo, algo que deverá acontecer em parceria com as marinhas da África do Sul, dos EUA e da Índia.

É essencial que os parceiros estratégicos de Moçambique assistam o país em áreas tão vitais como logística, treino militar, e recolha de intelligence. Da mesma forma, é fundamental que o ajudem a desenvolver capacidades de resposta militar rápida, tal como capacidades para operações especiais (a forma essencial pela qual se combatem adversários móveis e furtivos), e para ataques precisos e cirúrgicos, essenciais para poupar as populações civis.

Terá ainda de ser feito bastante trabalho em eficaz controlo de fronteiras: isto é indispensável para impedir que os insurgentes da Ansar al Sunna (ou al Shabaab, como também é localmente conhecida) usem as fronteiras porosas da região para abastecimentos logísticos, e para transitar de um país para outro.

PORÉM, O COMBATE À INSURGÊNCIA TAMBÉM TEM DE ser baseado em desenvolvimento. Esta, afinal, é uma insurgência que é largamente alimentada pelo subdesenvolvimento, pela miséria e pela falta de horizontes que caracterizam a região. Como documentado num estudo recente de João Feijó (investigador do Observatório do Meio Rural, em Moçambique), embora muitos dos comandantes da Ansar al Sunna sejam fanáticos religiosos, a larga maioria dos combatentes de base são motivados por frustrações socioeconómicas, e não por religião. Com efeito, o grupo não recruta por aí além entre zelotas teocráticos, mas sim e essencialmente entre os deserdados da terra: pessoas exasperadas por pobreza, opressão, desemprego, falta de oportunidades, e assim sucessivamente.

Uma abordagem válida à insurgência terá de dar resposta a estas questões, que são, afinal, os factores que possibilitam que a insurgência possa crescer e ganhar ímpeto ao longo da região. Isto significa que a resposta militar tem de ser complementada com iniciativas que criem desenvolvimento territorial e económico, e ainda algo como um nível de vida, na região.

HÁ QUE RESOLVER O SUBDESENVOLVIMENTO CRÓNICO que caracteriza Cabo Delgado, uma das províncias mais pobres do país. Começa-se pelas áreas sob controlo governamental, e procede-se depois sequencialmente ao longo do resto do território, à medida que o mesmo for sendo pacificado.

Antes de mais, é preciso assistir e ajudar as populações no imediato. Numa província onde quase metade da população está, neste momento, deslocalizada, vai ser preciso assistência humanitária de escala populacional.

Porém, não se fica por aqui. Depois, avança-se para reconstrução económica.

A economia local assenta em agricultura rudimentar, em pesca artesanal, na exploração de recursos naturais, e ainda no sector informal, que é muito prevalente na área.

O sector informal baseia-se largamente em corrupção local, em narcotráfico (em particular, heroína do Crescente Dourado), e no tráfico de pessoas e bens, e é auto-evidente que estas coisas têm de ser extintas, por um sistema judicial revigorado e idóneo.

O sector extractivo é e continuará a ser muito importante, e tem de ser plenamente desenvolvido. Porém, também é imprescindível que a economia local não dependa exclusivamente do mercado extractivo, e das flutuações que o caracterizam: onde as ocasionais vacas gordas das altas de mercado são rapidamente emagrecidas e definhadas por volatilidade e baixas de mercado.

Há, portanto, que diversificar a economia local.

A agricultura e as pescas, que garantem muito do autoemprego na província, têm claramente de ser modernizadas e tornadas mais produtivas; é um trabalho gradual, mas que tem de ser feito. Em simultâneo, é possível desenvolver o território, e criar milhares de empregos, através da criação de indústria na região, e, claro, de um programa de obras públicas. Afinal, há que reconstruir infraestrutura destruída, e construir novas infraestruturas: estradas, ferrovias, infraestrutura energética, canais, infraestrutura portuária e aeroportuária, hospitais, escolas.

A recém-criada Agência para o Desenvolvimento Integrado do Norte, a ADIN, pode vir a ter um papel muito importante em tudo isto e, se bem usada, pode até vir a assumir, para o norte de Moçambique, o papel que a Works Progress Administration teve nos EUA do New Deal.

Como financiar estas coisas? Bom, Moçambique é um estado soberano e, nessa qualidade, tem o poder para emitir o crédito público que seja suficiente para tal propósito. Não se fala aqui de políticas de desvalorização do metical: isso é o que uma mão cheia de casas especulativas internacionais conseguem num dia de business as usual a especular contra o Tesouro moçambicano. Fala-se, isso sim, da emissão de crédito suficiente para estimular o crescimento da economia física e produtiva e, com isso, valorizar a economia moçambicana e, ultimamente, o próprio metical.

UM PROGRAMA DE RECONSTRUÇÃO para Cabo Delgado também terá, claramente, de apostar na criação de serviços públicos de qualidade.

A saúde é uma prioridade urgente, agora que o conflito levou ao encerramento de cerca de um terço das instalações de saúde da província. Isto acontece enquanto, no terreno, as pessoas continuam a sofrer de tuberculose, HIV, cólera, malária e, agora, COVID-19. É indispensável reconstruir as capacidades destruídas, e melhorar dramaticamente os serviços de saúde no seu todo.

Da mesma forma, há que resolver o grave défice educacional da província (agora agravado pelo conflito e pela própria pandemia) e, nisto, recuperar e qualificar toda uma nova geração. Em particular, serão necessários programas educacionais profissionalizantes, para formar, o mais rapidamente que possível, jovens habilitados para trabalho técnico no sector extractivo, e nas funções de desenvolvimento da região.

Qualquer iniciativa séria para a reconstrução de Cabo Delgado tem ainda de enfatizar o papel das mulheres locais. Primeiro, pelo papel essencial das mulheres na economia local: a agricultura é quase toda feita por mulheres. Depois, porque as mulheres são sempre centrais na sociedade, mesmo quando não o são: como as mulheres vão, assim vão as crianças, e assim vão os homens, já que os homens querem agradar às mulheres. Convém, assim, que as mulheres sejam activamente envolvidas na construção de paz, de desenvolvimento e da melhoria do nível de vida.

TÊM SIDO REPORTADOS CONSTANTES ABUSOS de direitos humanos, sobre as populações civis, por membros das Forças de Defesa e Segurança (FDS). É muito importante que abusos deste tipo não sejam tolerados nem deixados acontecer. A situação em Cabo Delgado só será resolvida se as populações locais puderem ter confiança nas forças governamentais, ao invés de as verem como potenciais inimigos.

Aqui, também é preciso ter em mente que o abuso de populações civis por forças de segurança é uma das marcas essenciais de terceiro-mundismo: o mesmo tipo de terceiro-mundismo ao qual muitos interesses externos (e, provavelmente, os próprios “donos do jogo” que são mencionados por Tomaz Salomão), gostariam que Moçambique aceitasse relegar-se. Moçambique tem, assim, e também a este nível, de tornar-se hoje no país que quer ser amanhã. A frente dos direitos humanos não é uma frente de somenos. É a própria frente pela alma do país.

Há, portanto, que garantir que os efectivos das FDS se comportam de modo profissional, competente, e respeitador de direitos humanos. E, há que investigar oficialmente alegações de abusos humanitários por membros das FDS, condenando judicialmente quaisquer responsáveis por tais abusos, e atribuindo indemnizações justas às vítimas. Do mesmo modo, há que facilitar a cobertura jornalística do conflito, e de quaisquer abusos cometidos durante o mesmo; aparentemente, e segundo múltiplos relatos, isso é o contrário do que até aqui tem acontecido, e essa é uma situação que claramente tem de mudar.

Uma outra forma, essencial, de conquistar a confiança das populações civis (e, no percurso, de melhorar as condições de vida na região), reside na prestação de assistência militar, pelas próprias FDS, às mesmas populações. Isto inclui assistência humanitária, e a distribuição de víveres e outros essenciais, mas também passa por medicina militar, para a prestação de cuidados de saúde, e por engenharia militar, para a (re)construção de infraestrutura.

AUTO-RESPEITO É SEMPRE ESSENCIAL. Moçambique é um dos países mais ricos em recursos naturais no planeta. Isto significa que tem muitas coisas que muita gente quer. E, significa que pode, e deve, fazer-se cobrar por isso. Este é um poder que Moçambique (tal como tantos outros) talvez não saiba que tem, mas que, não obstante, tem.

Moçambique tem, portanto, de exercer auto-respeito, e fazer-se respeitar. Antes de mais, tem de colocar um fim ao tipo de anarquia regulatória que as multinacionais tanto favorecem. A exploração predatorial de recursos tem de ser resolvida através de regulação apropriada e, em simultâneo, a extracção de riquezas naturais tem de ser submetida a um regime fiscal justo, com a totalidade dos proveitos fiscais a ser empregue no desenvolvimento do país. Da mesma forma, quaisquer contratos futuros com multinacionais devem incluir contrapartidas em desenvolvimento local: por outras palavras, as multinacionais devem comprometer-se a construir e a desenvolver infraestrutura pública, em benefício das populações locais, nas áreas onde operam.

Rui Miguel Garrido

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