A Nova Rota da Seda
O que é, e porque deveria ser tornada numa iniciativa multilateral
Porque seria interessante passar de protagonismo chinês a cooperação internacional
1. Portugal tem um enorme potencial económico. Está no centro do Atlântico, num ponto de confluência entre continentes e culturas, e devia ser um país comercial, um ponto central de passagem para os fluxos comerciais, industriais e financeiros do mundo transatlântico e, com efeito, global. No dia em que tal acontecer, Portugal terá uma economia dinâmica e vibrante de classe média, alicerçada em miríades de PMEs, e o nível de vida será extraordinário.
2. O enorme potencial económico de Portugal tende a passar despercebido àqueles que deveriam ser os primeiros interessados no mesmo, os próprios portugueses – tendencialmente conformados à falta de visão que incapacitou os últimos séculos da história do país. Porém, esse potencial não passa necessariamente despercebido a outros – como seja a China. A China, tendo reconhecido o potencial estratégico de Portugal, prepara-se agora para assinar um acordo com o governo português para a integração do Porto de Sines e de outras infraestruturas nacionais na rede transcontinental da Nova Rota da Seda, onde Portugal será uma ponte para África, o Atlântico e as Américas (para o comércio que vem de Oriente), e ainda a porta de entrada para a Europa (para as rotas que atravessam o Atlântico).
3. A Nova Rota da Seda, lançada em 2013 pelo governo chinês, e desde então em desenvolvimento, é uma vasta rede global de novos corredores económicos, e de novas rotas comerciais e vias de circulação (muitas delas terrestres e fluviais, muitas outras aéreas e marítimas) – e envolve, nas dezenas de países ao longo dos quais se espraia, vastos projectos de obras públicas e desenvolvimento do território, com a construção de infraestrutura economicamente útil, como sejam autoestradas e ferrovias, portos e aeroportos, canais, infraestrutura industrial e redes energéticas e de telecomunicações.
Se a antiga Rota da Seda, estabelecida há 2000 anos atrás, ligava a China ao Mediterrâneo através dos vastos territórios asiáticos, a Nova Rota da Seda estende-se ao longo de toda a Ásia e do Oceano Índico, expande-se para o Pacífico e para o Atlântico, e conecta Ásia, Europa, África, Oceânia e as Américas, nisto abrangendo e interconectando muitos países e biliões de seres humanos.
4. Iniciativas deste género são claramente indispensáveis para gerar progresso, desenvolvimento e liberdade ao longo do globo; e, nisto, para criar actividade económica e desenvolvimento económico, e a melhoria geral do nível de vida, e ainda para promover paz e entendimento entre países, com base em boas relações económicas e no avanço geral em standards civilizacionais.
Em particular, são essenciais para desenvolver – ou, mais frequentemente, reconstruir – as regiões mais atrasadas e subdesenvolvidas do planeta, tipicamente entregues a pobreza, exploração, iliteracia, falta de horizontes de vida, radicalização, conflito sectário, genocídio. Até aqui, estas coisas têm sido fria e cinicamente promovidas a partir do exterior como forma de facilitar a pilhagem de recursos naturais e o saque das economias locais. É tempo de libertar estas àreas do jugo, e isso será feito através de iniciativas desta índole.
5. Só é lamentável que algo à escala da Nova Rota da Seda não tenha sido feito mais cedo. Afinal, não era esse um dos alegados propósitos do sistema internacional e, nisto, de instituições como Banco Mundial e FMI? Porém, estas coisas não só não foram usadas para avançar o desenvolvimento do planeta, como passaram as últimas décadas a encabeçar esforços para facilitar o desmantelamento de países, em prol das agendas de poder de consórcios oligárquicos multinacionais – pense-se, por exemplo, na subjugação de países sob dívida irreparável, no notório rolling over on the debt.
É, porém, mais grave que isto. Após a II Guerra, ocidentais e soviéticos tinham – e sabiam que tinham – o dever de cooperar para refazer o mundo do pós-guerra sob moldes do género da Nova Rota da Seda; em vez disso, dedicaram-se a destruir o Mundo em Vias de Desenvolvimento através das sucessões intermináveis de desestabilizações, golpes e guerras quentes de 3º mundo que patrocinaram sob a ‘Guerra Fria’.
As democracias ocidentais, em particular, tinham – como continuam a ter – a missão histórica de avançar progresso e desenvolvimento, liberdade e democracia ao longo do globo. Porém, foram essencialmente vergadas à noção de que as holdings de elites financeiras transnacionais são mais importantes que o bem da espécie, e de que é mais giro destruir que criar, mais estimulante terceiro-mundizar e pilhar países que ajudá-los a crescer e comerciar com eles. E, como se colhe o que se semeia, o Ocidente de hoje consome-se lentamente em paixões mórbidas por coisas como bolhas, jogos, especulação e desindustrialização, casinos e bairros sociais, comunitarismo, auto-degradação, desmantelamento infraestrutural e do sector público, utopianismo financeiro e pós-civilizacional; esta fascinação neo-romântica pelo decadente e sifilítico também se estende a coisas como neomaltusianismo, substâncias, reality shows, capricho, fantasia e realidades alternativas, monetarismo schachtiano, a moralidade de austeridade e da flagelação dos pobres, securitarismo para securitizar a desconstrução.
6. A Nova Rota da Seda é, portanto, uma iniciativa essencial e, com efeito, indispensável para progresso em assuntos humanos. Porém, deve também ser observado que é uma iniciativa chinesa e, a não ser que seja abraçada e tornada claramente multilateral pelas outras potências – como, de resto, merece –, será usada essencialmente para avançar interesses chineses: primeiro, expansão comercial e depois, com efeito, projecção geopolítica e imperial chinesa ao longo da Eurásia e do globo. Afinal, e do ponto de vista de geoestratégia chinesa, o século 21 é o século chinês, o século no qual o dragão levanta vôo para se tornar na principal superpotência global.
O vôo do dragão tenderia a trazer consigo unilateralismo despótico, e isso seria muito más notícias para o mundo. Mas também induziria outras potências a reagir e, por consequência, levaria a todo o tipo de choques passivo-agressivos entre lados. Expansão comercial e geopolítica chinesa seria confrontada no terreno por desestabilizações anglo-americanas, por forças informais de ‘freedom fighters’ (como sejam os habituais surrogados jihadi e mujaheedin) e, a partir de certo ponto, por afirmação imperial russa na Ásia Central, e por manobras indianas e japonesas no Índico e no Mar da China. Haveria a proliferação de guerras regionais arrastadas com o uso de facções locais, e o século 21 seria tornado antes no século do ‘choque de civilizações’ – uma espécie de continuação mais destrutiva do século 20.
7. Logo, e para que a promessa de desenvolvimento mundial da Nova Rota da Seda seja concretizada, é essencial que a iniciativa deixe de ser puramente chinesa e passe a ser uma iniciativa multilateral, activamente trabalhada e deliberada em pé de igualdade e em boa vontade por todos os países e potências relevantes. Se tal não for possível – mas é claro que é possível –, então que se criem novas e melhores iniciativas deste género, a par da chinesa. Elevar e tornar próspero e livre este planeta, e garantir que o mundo se torna definitivamente naquilo que cada vez é menos – um mundo feito para ser habitado por seres humanos. A Humanidade e as gerações futuras agradecerão.
Rui Garrido
P.S.: este artigo foi escrito em parceria com a minha grande amiga Catarina Alexandra Mendes. A Catarina já não está connosco – faleceu no dia 13 de Janeiro, e o mundo ficou genuinamente mais pobre e perdido, desvalido de quem o enriquecia, e enriqueceria.
Catarina, ainda me custa acreditar que já não voltarei a ver-te olhos nos olhos, a usufruir da tua presença gentil, simpática, solarenga e luminosa, encantadora. A minha vida tornou-se mais vazia. Preencherei o vazio com a memória de ti, Catarina.
A inteligência doce e perspicaz da Catarina pode ser bem apreciada no artigo ‘Princípios da Comunicação’, que deveria ter sido apenas o primeiro de muitos excelentes artigos que iria escrever para este jornal. O artigo expressa bem a pessoa bonita que a Catarina era, uma pessoa empenhada em criar um mundo melhor – um mundo bom, onde as pessoas sejam boas umas para as outras, e onde o Homem seja o próximo do seu próximo, e já não o seu predador.