Vivemos num período da história mundial atípica: lutamos e sobrevivemos com uma pandemia mundial provocada por um vírus sobre o qual ainda temos pouco conhecimento. Situação pouco frequente mas não única. Lembremo-nos, por exemplo, que a humanidade sobreviveu à Gripe Espanhola que em 1918 terá infectado 1/4 da população mundial e morto entre 50 a 100 milhões de pessoas.

O ser humano é  potencialmente sobrevivente e criativamente resiliente. A sobrevivência depende das emoções. Apesar de algumas serem desconfortáveis (como o medo, a tristeza, o nojo, a vergonha ou a raiva), são elas que mobilizam o nosso comportamento, assegurando a sobrevivência. Se não tiver medo de uma queda num abismo, nojo de comida estragada ou  raiva perante alguém que agride um familiar, não executarei estratégias de coping adequadas, de resolução do meu problema, e provavelmente não sobreviverei. Não evitarei abismos, não rejeitarei alguns alimentos, não lutarei pelos meus.

O Medo pode ser um aliado poderoso. Mas também pode fazer-nos fugir, lutar ou congelar demais, de menos ou  em momentos desadequados. Quando isto acontece surgem as Perturbações de Ansiedade, com um medo excessivo, prolongado e gerador de disfunção e sofrimento. Nestas situações o medo é inimigo, deixa de ser aliado.

Categorias de perturbações de ansiedade

Os psiquiatras descrevem várias categorias de perturbações de ansiedade. Por vezes estas categorias sobrepõem-se ou associam-se a outras perturbações psiquiátricas. Por exemplo, é muito frequente a coexistência, diz-se comorbilidade, da depressão com a ansiedade. Muitas vezes a ansiedade é o soldado da primeira linha do segundo inimigo, a depressão. A pessoa  pode pedir ajuda por sinais de ansiedade e evoluir negativamente com sinais de tristeza excessiva, atingindo critérios clínicos de depressão.

As Perturbações de Ansiedade podem expressar-se de várias formas:

Pode haver uma preocupação excessiva sobre decisões do nosso quotidiano, com incapacidade de fruir os momentos diários prazerosos, em que confundimos a parte com o todo, sobredimensionando o pormenor (Perturbação de Ansiedade Generalizada).

Podem existir episódios de um medo intenso, intolerável e intermitente, sem identificarmos o gatilho, não vemos inimigo que justifique o medo mas sentimos medo de morrer ou de perder o controle. Sem percebermos a razão do medo, vamos a vários especialistas para que identifiquem razões médicas para explicar a reação física ao medo. Ao cardiologista para as palpitações, pneumologista para a hiperventilação, gastroenterologista para as urgências de idas a casa de banho ou ao neurologista para as tonturas ou dores de cabeça. Explicam-nos que nada (?) temos além de medo e entretanto passamos a sentir medo de ter medo, evitando locais públicos, pontes, distâncias de casa, onde o medo diminui mas não desaparece (Perturbação de Pânico com Agorafobia).

Podemos expressar o medo pelo corpo, sentindo queixas físicas inexplicadas, sobre as quais  o nosso médico não identifica causas físicas, apesar de sentirmos dor, diarreia, enjoo ou desequilíbrio. Sinalizamos o medo pelo corpo. (Perturbação de Somatização).

Outras vezes, apesar do médico negar a doença que sentimos, porque os sinais de mal estar físico são reais, não identificamos o medo e a tristeza e defendemos a teoria de sabermos o nome doutro inimigo imaginário (Hipocondria).

Podemos tentar controlar o medo com rituais mentais ou motores, verificando, limpando e organizando excessivamente. A nossa mente fica invadida por pensamentos e imagens que não gostamos,dos quais sentimos repulsa, vergonha ou medo e apesar de resistirmos, esses pensamentos colam-se e tornam-se obsessivos (Perturbação Obsessivo-Compulsiva).

Estas Perturbações de Ansiedade são muito frequentes.

Estas Perturbações de Ansiedade são muito frequentes. Segundo dados descritos pela Direção Geral de saúde, em 2017, são as perturbações psiquiátricas mais prevalentes (16,5%), seguidas pelas Perturbações de Humor (depressão e doença bipolar) com 7,9%. Estes valores são preocupantes se considerarmos que mais de 1/5 dos portugueses sofre de uma perturbação psiquiátrica, que Portugal é o segundo país com maior prevalência de doenças psiquiátricas da Europa  e que provavelmente apenas 1/4 destes pacientes recebe tratamento e que apenas 10% terá um tratamento considerado adequado.

Tratamento de Perturbações de Ansiedade

Pode ser feito por recurso a psicofármacos seguros, com poucos ou nenhum efeitos adversos, prescritos por médicos de família ou por psiquiatras. Também a psicoterapia estruturada, realizada por psicólogos ou psiquiatras treinados,  associada ou não a psicofármacos, é eficaz no tratamento. Nestas intervenções devolve-se ao medo o papel de aliado, fazendo-se tréguas com o inimigo.

A situação de pandemia por Covid-19 está a aumentar provavelmente  a incidência de perturbações psiquiátricas em geral e especialmente de Perturbações Ansiosas. Não existem ainda  dados epidemiológicos seguros mas a pandemia do medo está entre nós.

Vários fatores são determinantes nesta pandemia: medo do contágio de um vírus sobre o qual temos pouco conhecimento; o isolamento social determinado pelo distanciamento físico e confinamento; a expectativa ou a vivência atual de perda econômica; a difusão de informação imprecisa ou falsa sobre as características do inimigo ou sobre a forma de o combater; a xenofobia vírica, com reações de rejeição social perante grupos de risco (idosos, familiares de contagiados)  ou paradoxalmente sobre os técnicos de saúde, mediados pelo medo do contágio; a raiva, que esconde o medo,  perante os outros que não  assumem medidas preventivas de contágio e que rejeitam uma posição de defesa de grupo.

Curiosamente, muitos de nós encontram na crise da pandemia a oportunidade da mudança interna. Recorrem a outras emoções:  a alegria de reencontrar formas alternativas de comunicar ou de redescobrir hobbies esquecidos; ou a compaixão de apoiar quem também tem medo. Alguns também rentabilizam a tristeza da perda para galvanizar a mudança e  a partilha do medo para ficarem mais próximos…

O ser humano é  potencialmente sobrevivente e criativamente resiliente.

Nuno Goulão, psiquiatra e psicoterapeuta, Clínica CUF Almada