Este texto é uma reflexão que resultou de um primeiro comentário de um amigo, comentário bem justificado, à demagógica e tresloucada proposta deste nosso governo – sê-lo-á? – para que, até ao 9º ano, não haja possibilidade de chumbar alunos. Tal proposta é inqualificável. 

Há mais de 40 anos que estou ligado ao Ensino, primeiro numa fugaz – felizmente – carreira pública, depois gerindo o meu próprio espaço de Explicações, onde eu e minha mulher trabalhamos desde o 5º ano aos cursos superiores, cada um de nós na sua área de formação.

Esta proposta do Governo, serve para criar uma geração ainda mais empobrecida não só do ponto de vista cultural como de competências e, o mais grave de tudo, sem nunca ser confrontada com responsabilidades. 

O ensino está na maior salgalhada possível, com programas desmesurados e conteúdos ministrados anacronicamente, sem nenhuma direccionalidade, ou melhor, direccionado para a estupidez e a ausência de uso da inteligência e da criatividade. É fácil, assim, criar pessoas sem formação a qualquer nível e pô-las a trabalhar com salários baixos e sem capacidade reivindicativa, por manifesta falta de cultura humanística – que tem sido literalmente passada para segundo plano por sucessivas reformas do Ensino, tendentes a torná-lo uma inócua fábrica de imbecis. 

O que mais me repugna é a hipocrisia por detrás de tudo isto. Criticou-se o ensino do Estado Novo por razões várias – não era abrangente que bastasse, não apostava na alfabetização para continuar a alienar o povo, era elitista no que respeitava à Universidade, separava o secundário em escola técnica e liceu, criando barreiras de acesso ao superior para os alunos da primeira, não se ensinava Inglês na escola industrial, o Português era mais elementar, etc. As críticas tinham fundamento. 

Para mais, por todas estas razões, se advogava que o povo era inculto e alienado, que estava de mente definhada pela religião, pelo desporto e pelo nacional-cançonetismo, os célebres três “F”’s – Fátima, Futebol e Fado. Mas as respostas a essas mesmas críticas, “à la 25 de Abril” raiaram sempre o anedótico. Primeiro, juntaram os dois modelos num ensino chamado unificado, em que, por questões de igualdade, os rapazes aprendiam a fazer malha e as meninas a brincar aos serralheiros. Também aí se aboliram os exames até ao 12º ano, o que fazia com que os alunos fossem confrontados com exames de responsabilidade na precisa altura em que entravam para a Faculdade e tinham de escolher as suas carreiras. O falhanço foi total – as meninas vão continuar a não querer ser serralheiras e a preferir o “tricot” e os meninos a não fazerem tapetes de MacRamé e a preferirem eventualmente a serralharia. A igualdade não se constrói assim. 

O País definhava com falta de pessoal tecnicamente habilitado, com um aparente excesso de licenciados, mas sem haver quem soubesse mudar uma tomada. Criaram então ensino profissional – ou melhor recriaram-no numa base algo inconsistente – e estes alunos continuaram a ter barreiras brutais para aceder ao ensino superior. Desta feita, graças ao nível de ensino de matérias como o Português e a Matemática neste ramo, com programas facilitados e facilitistas, não explorando conteúdos depois exequíveis nos exames de entrada para a Faculdade. E depois o Estado Novo é que criava elites e barreiras!!

Quanto ao analfabetismo, fez-se, de facto, um grande esforço de irradicação do mesmo; o problema é que as sucessivas reformas facilitistas do Ensino criaram outro tipo de analfabetismo, o analfabetismo funcional. Um aluno chega ao 9º ano – e se for sem chumbar, então é uma festa – sem saber “Ler”, nem “Escrever” nem “Contar”. Se assim já sabem pouco, com esta reforma passam a não saber nada. Passa a haver uma geração de analfabetos funcionais que mal conseguem ler “A Bola” e que são geniais a jogar jogos de computador e tralhas anexas. Assim, o Ensino está longe de ser democrático. Massivo não é forçosamente democrático. É massivo, mas é tão mau que não ensina ninguém. 

Quem puder pagar bons colégios ou bons explicadores para que os filhos aguentem o secundário, fica ainda mais beneficiado. Assim, aquilo que parece ser uma medida do tipo “coitadinhos dos meninos, pois claro, chumbá-los é traumático”, esconde, de facto, uma medida do tipo “a canalha passa toda e os eleitos poderão sem competição dessa malta reles entrar para os lugares de topo”. É um nojo. E já nem falo na eliminação de qualquer papel responsável dos professores perante esta hecatombe, que vai esvaziá-los ainda mais de qualquer tipo de poder ou prestígio, reduzindo o seu papel a uma espécie de pastores da carneirada. Não sei se a sua função não será similar à dos contínuos, pelo que, por uma questão de poupança, podem sempre despedir estes e pôr os professores a exercerem como pessoal auxiliar.

Bom era que, perante este despautério, o sr. Mário Nogueira, em vez de andar a pensar no melhor modo de “chular” o Estado com exigências de reposição de padrões que, quase todos, se algum modo perdemos durante a crise, pensasse nesta impensável proposta deste governo de monos a que estamos entregues, graças precisamente a duas coisas: uma, o terem sido capazes de, sob a capa da Educação para todos, terem criado um povo inculto, imbecil e massificado em torno de coisas sem valor como é o nosso; outra, a incapacidade de fazer uma oposição válida a tudo isto e deixando que esta trupe, provinda de um golpe palaciano e constitucional, tenha chegado à legitimidade da eleição, sob a capa da propaganda e da aldrabice, tão soezes nas doutrinas ditas socialistas. 

E os paizinhos dos “rebentos”, de uma vez por todas, encarem a hipótese de nem todos as criancinhas serem “Einsteins” e de acharem que os seus filhos serão melhores pessoas e mais competentes, se forem direccionados para o culto da responsabilidade e do mérito, pelo trabalho e pelo respeito, e não pelo facilitismo e o abanadalho. Ser avaliado pode dar um bom ou um mau resultado: bom para os que trabalharem e forem responsáveis, mau para os calaceiros e irresponsáveis. Isso é que é justo: não é nivelar todos pelo mesmo, os que trabalham e os que não o fazem, pois isso acabará por desmotivar os bons e levar a um abaixamento dos padrões intelectuais de toda uma geração.

Mas depois vêm com a conversa da Finlândia e com comparações bacocas entre modelos de ensino díspares em sociedades díspares. Não vou estar aqui a apreciar os conteúdos e a profundidade dos mesmos nos dois sistemas de ensino. A ideia que tenho do ensino público nos países escandinavos (dos quais o que melhor conheço é o da Noruega) ou mesmo do Reino Unido, no que respeita aos níveis básicos, é a de um modelo ainda mais básico e com menos rigor e exigência que o nosso. De qualquer modo, as sociedades são diferentes. 

A sociedade finlandesa tem outro nível cultural e de motivações face à escola. O entendimento do progenitor médio nórdico é muito diferente do progenitor médio português, que continua e cada vez mais preso aos três “F”’s, através do absurdo culto do Fado que tem recrudescido nestes últimos anos, como se fosse a única forma de arte e expressão musical válida em Portugal (Marisa anda nos píncaros, mas nem se fala na pianista Maria João Pires, por exemplo), da veneração ridícula pelo futebol, cristalizada em torno de pessoas como o Ronaldo – inegavelmente talentoso no seu “métier”, mas, com toda a honestidade, sem grande peso nos desígnios da Nação – e uma Fátima revivalista, com uma dimensão reposicionada de tal forma, que até a mim, católico confesso, me perturba.

Que ironia!! Salazar só ouvia ópera (detestava o fado) transmitida de S. Carlos, ignorava o futebol e nunca foi a Fátima – nem quando cá veio o Papa Paulo VI, mal grado as solicitações do cardeal Cerejeira, pois o Sumo Pontífice recebera em Roma a título oficial os líderes dos ditos “Movimento de Libertação” das ex-colónias, à data, goste-se ou não, nossos inimigos no plano militar e diplomático, e esta foi uma atitude coerente.

Toda esta mistificação e hipocrisia me maça – e não se entenda que estou aqui a fazer meu o ideário do Estado Novo, mas tão somente a afirmar que havia coerência ideológica nos seus actos e que se sabia sempre com o que se contava para o bem e para o mal.

A democracia portuguesa não conseguiu até hoje evitar estas alienações e mistificações – que tem cultivado com um mau gosto e falta de tacto peculiares, sem resolver problemas estruturais ligados à falta de Cultura e preparação do povo, que, por tais razões, é pouco produtivo, pouco receptivo à inovação, assim justificando o atraso económico eterno que nos tem assolado. Mais à esquerda ou mais à direita, sucessivos governos, salvo eventuais honrosas excepções tristemente pontuais, pouco fizeram para obviar estas questões. Ensino, Cultura, Economia relacionam-se muito mais do que se possa pensar e pretender poupar no ensino através de um facilitismo e de um nivelamento pelo mais baixo, não vai trazer quaisquer benesses. 

As sociedades desenvolvem-se com base em critérios de excelência, oscilando entre decisões socialmente úteis e decisões meritocráticas, que assim possam, por um lado alargar o acesso aos vários níveis de ensino aos diversos extractos sociais, por outro favorecer o desenvolvimento de pessoas habilitadas técnica e culturalmente, que possam implementar níveis mais altos de produtividade e melhor absorção da inovação. 

Espero bem que a sociedade portuguesa, anódina, adormecida, alienada, responda em massa a este aborto de lei de bases e se recuse a esta bandalheira.

Manuel Pedro Santos

Professor