Os Maias são a obra-prima por excelência de Eça de Queiroz. Publicado em 1888, o romance naturalista tem o fatalismo, a análise social, o enredo passional, o humor – ora fino, ora satírico – a crítica à situação do país e à alta burguesia alfacinha como os grandes trunfos de uma história que continua a falar aos nossos dias como raras obras o conseguiram.
João Botelho, de 65 anos, depois do sucesso de o Filme do Desassossego, uma adaptação do livro de Fernando Pessoa que lançou sem distribuidor em digressão pelo país, propôs-se a fazer algo ainda mais grandioso: adaptar Os Maias ao grande ecrã.
Em entrevista exclusiva ao Distritonline, o cineasta confessou que o seu “maior sonho” é conseguir “despertar a curiosidade das pessoas com o filme para o livro” e, por isso, não esconde a felicidade de ter conseguido “duplicar a venda da obra nas livrarias”.
Para João Botelho “é preciso voltar às coisas que nós amamos”, nomeadamente à grande literatura, porque “um país sem literatura, sem arte e, no sentido lato, sem cultura é um, verdadeiro, caixote do lixo”.
Distritonline [DO]: Como é que surgiu a ideia de adaptar para o cinema o romance de Eça de Queiroz?
João Botelho [JB]: Porque comecei a ficar mais velho e, atualmente interessa-me tratar, sobretudo, de assuntos que são importantes para todos nós. E, por outro lado, o Eça de Queiroz escreveu obras brilhantes, mas esta é a mais importante, demorou sete anos a escreve-la e é tão brilhante que foi arrasada pela crítica naquela altura, porque ninguém queria rever-se ao espelho.
Os Maias são, sem dúvida, uma espécie de espelho de Portugal e a obra é tão forte que é quase atual. As personagens são pessoas concretas, continuam a existir pessoas como o Dâmaso Salcede, o Silveirinha, o Gouvarinho, o banqueiro Cohen que afirma, na obra, que os bancos só servem para cobrar impostos e contrair empréstimos, a própria família Maia é uma espécie da família exemplar de um Portugal aristocrático.
O incesto que é uma espécie de obscenidade é um incesto político: como já não tem ninguém com quem dormir, para se manter a raça dorme-se com a irmã! E depois representa também a destruição do romance romântico, num romance normal da época, sobretudo num país tão católico como o nosso, o incestuoso dava um tiro na cabeça e a incestuosa ia para um convento, mas neste caso não, cada um segue a sua vida normal, ele vai dez anos espalhar o tédio pelo mundo e ela casa-se, tem um filho e continua a vida.
Por último, a ideia final de Os Maias dos portugueses não correrem nem para o poder, nem para o amor, nem para a maior riqueza do mundo, mas para a comida, dá-nos conta de um Portugal moribundo, a desaparecer, à beira da bancarrota, cumprida dez anos depois, que obrigou Portugal a pedir um empréstimo a um banco inglês, empréstimo esse que demorou 99 anos a pagar, com a última prestação a ser paga em 2001.
Há uma data de camadas na obra, uma história de amor fortíssima impossível, uma descrição da vida social de Portugal, uma descrição da psicologia do país, como se Portugal fosse um fado, sem remédio e sem sentido e, simultaneamente, Eça de Queiroz tem a capacidade de rir-se do estado do país, porque a única forma de encararmos a vida mesmo no pessimismo é sermos otimistas.
Eu defendo que o cinema não deve dar lições, mas deve inquietar e é esse o meu grande objetivo com esta adaptação.
DO: Qual é a citação ou a passagem de Os Maias que mais gosta?
JB: Há tantas maravilhosas. Mas há uma passagem que adoro, a história final em que o Ega diz “se tivesse ali a coroa de Carlos V, se tivesse ali a fortuna de Rothschild, se tivesse ali o maior amor do mundo eu não acelerava o passo, este passo curto e direitinho, que é o passo que se deve ter perante o poder”. De repente, o Carlos lembra-se que tinha um jantar marcado e desatam os dois a correr atrás do elétrico. Esta ironia sobre Portugal é encantadora.
DO: Foi difícil sintetizar um romance desta envergadura em duas horas?
JB: Foi, sem dúvida, o que me deu mais trabalho. Li a obra várias vezes, voltei atrás, cortei, colei… É um trabalho árduo, porque o romance é enorme e pode-se fazer um filme inteiro com a descrição do ramalhete, uma média-metragem com a descrição dos cabelos da Maria Eduarda.
É muito difícil, escolher o que se deixa e o que se tira e eu sei que tirei muita coisa, espero não ter tirado partes essenciais.
DO: O que é que o levou a optar por telas gigantes – pintadas pelo artista plástico João Queiroz – em vez de os tradicionais cenários ao ar livre?
JB: É uma atitude económica, mas também uma atitude estética. O cinema é a arte mais falsa do mundo, por exemplo, neste filme o Afonso da Maia, interpretado por João Perry, morre, mas ainda esta semana tomei um café com ele, ou seja, ninguém morre no cinema. Eu montei um espetáculo artificioso, como se fosse uma ópera, os cenários, as cabeleiras, os adereços, os desenhos que aparecem no filme, a bengala do Ega, os chapéus, a maquilhagem é tudo falso, a partir daí tudo é verdadeiro. O que é que é verdade?! O texto de Eça de Queiroz e o que as pessoas sentem quando assistem ao filme, seja frio, calor, tédio, choro e, até mesmo, o sono. O cinema é uma coisa de mentira, mas uma coisa de verdade em relação à mentira que é exposta, que são os sentimentos do público.
DO: Ficou surpreendido por Os Maias terem sido o filme mais visto do ano?
JB: Sim, sinceramente, não estava à espera. No entanto, existem dois fatores que podem explicar esse fenómeno: por um lado o génio do Eça de Queiroz, por outro o regresso dos adultos ao cinema. Estive em várias salas durante a exibição do filme, nomeadamente nas salas ditas comerciais, e estavam lá pessoas que não iam ao cinema há mais de dez anos.
As pessoas gostam de cinema de adultos também e, atualmente há sobretudo cinema para crianças a partir dos quatro anos. Os filmes, hoje em dia, são feitos para comer e beber, e não para ver e ouvir. Não tenho nada contra isso, no entanto, o cinema que amo não é esse, mas sim o que permite que os espetadores vejam, oiçam e, principalmente, pensem.
DO: Já o tinha feito com o filme Desassossego, andar em digressão pelo país é uma forma de reaproximar os portugueses do cinema, particularmente o público escolar?
JB: Essencialmente, é serviço público. Se tenho o apoio do Estado no financiamento do filme, tenho de devolver esse apoio, levando o filme a pessoas que por vezes não têm hipótese de o ver, no caso das escolas, porque é obrigatório lerem o livro e acredito que o filme pode funcionar como um incentivo à leitura e à noite, para os adultos, porque defendo que os adultos têm o direito de ir ao cinema sem pipocas e sem coca-cola. Atualmente, um distribuidor ganha um euro ou dois no bilhete e seis euros nas pipocas e na coca-cola, mas é preciso, de vez em quando, aparecerem uns malucos a tentarem retirar isso das “cinetragens” (risos).
DO: Qual tem sido o feedback internacional?
JB: Tenho andado em vários festivais a apresentar o filme, já estive em Londres e vou estar, futuramente, em Macau e na Rússia. O filme será, também, exibido no Brasil.