O CAMPO estende-se de horizonte a horizonte, uma vasta aglomeração de favelas e bairros de lata que se espraiam ao longo da paisagem e que, no seu todo, formam algo que, mais que um campo de refugiados, assume o aspecto de uma cidade de favelas de 3º mundo.

Em todas as direcções e para onde quer que a vista alcance, sucedem-se as barracas, as construções precárias e as habitações improvisadas – e, ainda, as ruelas estreitas que se insinuam e serpenteiam ao longo deste caos urbanístico. Sucedem-se também as cenas da vida quotidiana, que é fervilhante e animada, caótica e turbulenta. Os vendedores de rua, a confusão das bancas e dos negócios locais, as crianças que afluem às manufacturas, onde trabalham para os patrões locais. As multitudes de pessoas que seguem para aqui e para ali, algumas atarefadas, outras não – e, chocam entre si, atropelam-se, tocam-se, empurram-se, conversam, discutem e gritam umas com as outras. Algumas correm, outras fogem de outras, muitas outras regateiam, e compram e vendem tudo e mais alguma coisa por quase nada. As mulheres que acartam lixo da lixeira para vender para a reciclagem, e os seus filhos, que brincam junto a valetas de esgoto a céu aberto. Os homens com Ak47s que protegem certas áreas e certas casas. Os tiros que se ouvem à distância. As outras mulheres que, em trajes mínimos, vendem o corpo, e os homens que se consomem com álcool e narcóticos – e ainda aqueles outros, que escolhem outras formas de morrer lentamente.

ESTAMOS NO SUD-IBÉRICO 7, que se estende ao longo de território alentejano a sul do pólo urbanizado sustentável de Castro Verde, e que é um dos grandes campos de refugiados estabelecidos nos anos 20 no sul da Península Ibérica, para absorver o impacto das vagas migratórias provindas do norte de África. Hoje, campos deste tipo são uma constante ao longo da Europa, e é de notar que são muito similares aos campos de refugiados das Nações Unidas que, no início do século, existiam um pouco ao longo de toda a África. Este campo, à semelhança de muitos outros, começou por ser um pequeno campo de refugiados, após o que foi crescendo e absorvendo continuamente mais populações, até assumir o aspecto actual. Aloja hoje mais de 1 milhão de seres humanos, empacotados entre si nas mais precárias condições materiais.

É um ambiente tão caótico e desordenado quão vivo e agitado, perigoso e violento, devoluto e precário. É dominado pelos gangs e pelas máfias locais, por milícias sectárias, e pelas próprias forças de segurança. Uns e outros são, de resto, indistinguíveis entre si nas práticas e nos tipos de abuso e de exploração que impõem à população.

A miséria, a desnutrição e a falta de sanitação tornam-no num incubador de doenças e de epidemias, em particular aquelas da era: cólera, tuberculose, formas geneticamente modificadas de malária e de varíola – e, ocasionalmente, ebola.

A criminalidade é endémica, a conflitualidade sectária disseminada, e a violência de gang pervasiva. Vastos números são facilmente radicalizados, e a maior proporção das pessoas tem de se envolver em actividades ilegais como condição de sobrevivência – a economia informal emprega, de resto, a larga maioria da população.

Muitos dos ataques terroristas que acontecem na sociedade parecem ter a sua origem nestes campos. Nalguns casos isto é verdade. Porém, outros ataques, normalmente os mais brutais e tecnicamente complexos, são organizados por interesses de topo para avançar agendas de controlo – e, depois, culpados nos bodes expiatórios fáceis que estes campos providenciam.

Sendo epicentros de insegurança e crime, estas áreas são continuamente expostas a cercos e incursões pelas forças de segurança – seja em operações policiais, seja numa base punitiva. Estes eventos envolvem unidades com armamento de combate, humvees, blindados, drone hives, e frequentes bombardeamentos cirúrgicos.

A vida é hobbesiana: má, difícil e curta.

AQUI E ALÉM NA PAISAGEM, erguem-se alguns grandes complexos empresariais e laborais, à volta dos quais as favelas se estendem em todas as direcções. Estes complexos são murados, altamente securitizados, e protegidos por forças privadas. Uma proporção relativa da população, ainda assim expressiva de vastos números de pessoas, trabalha nos mesmos.

Quando estes campos foram estabelecidos, eram meros campos de alojamento. Depois, pensou-se em transformá-los em colónias de trabalho. Na altura foi dito algo como, «é bom para a integração social destas pessoas e, para além disso, estamos a dar-lhes alojamento, comida, electricidade, água corrente e todas essas coisas – portanto, eles têm uma dívida social!, para com a nossa sociedade – porque é que não haviam de pagar com trabalho». A potencial força laboral era enorme e continuamente refrescada, muita dela qualificada, e podia ser feita trabalhar por salários tão baixos como 20 ou 30c à hora, por trabalhos que na economia real pagariam 10x mais. Algo como o que já no início do século acontecia com a economia prisional americana (na qual este sistema laboral, de resto, se baseou).

Em breve, e ao longo de toda a Europa, empresas e corporações receberam luz verde para entrar nestas instalações e aí montar call centers, serviços administrativos, manufacturas, linhas de montagem – e, explorar a mão de obra barata. Isto foi acompanhado da mudança da imagem dos campos, que deixaram de ser meros “campos humanitários” para passarem a ser também “campos de integração social”.

Daqui houve a ascensão de uma vasta coolie labor economy centrada nos campos, uma economia low cost de baixos salários e standards laborais mínimos. A economia real, que até aí já estava a competir com os standards mínimos que eram oferecidos por outsourcing industrial, passava agora a ter de competir com standards de plantação também ao nível doméstico. Os resultados foram os expectáveis: os empregos e a produção que ainda existiam na economia real começaram a afluir em massa para o novo buraco negro económico dos campos, e a corrida para o fundo em standards laborais foi extraordinariamente acelerada. O impacto no nível de vida foi estarrecedor.

Embora alguns campos tenham vindo a assumir o aspecto de Arbeitslager (grandes perímetros militarizados, onde multitudes de literais escravos trabalham até à última caloria), a larga maioria seguiu aquela que é claramente a direcção do futuro, assumindo o aspecto de aglomerações 3º mundistas onde a exploração neofeudalista de mão de obra barata convive lado a lado com uma pervasiva economia informal que emprega a larga maioria da população.

OS CAMPOS são essencialmente populados por refugiados, populações deslocalizadas, imigrantes ilegais capturados – ou seja, por massas humanas expressivas das vastas vagas migratórias que afluem à Europa em busca de um ilusório El Dorado, ou simplesmente em fuga da turbulência contínua que hoje engolfa muito do globo. Porém, começam também a receber populações ocidentais per se. Isto inclui massas de “refugiados internos”: pessoas que perderam tudo em choques económicos ou em catástrofes naturais, ou ainda pessoas que estão em fuga de conflito sectário no seio da própria Europa. Inclui também vastos números de pobres, indigentes e desempregados crónicos – pessoas que a economia normal já não consegue (ou não quer) absorver e suster, e que afluem a estes campos em busca de subsistência básica. Isto acompanha a aceleração das dinâmicas de desintegração sócio-económica no 1º mundo, e acontece enquanto a economia real começa ela própria a assumir o aspecto da economia dos campos. Este não é, de resto, o único ponto em que há convergência gradual entre a realidade dos campos e a de uma “sociedade normal” que é continuamente mais precária e desigual, insegura e monitorizada.

O SUD-IBÉRICO 7 é de si impressionante, mas tende a empalidecer por comparação com os maiores campos da Europa – que são, claro, coisas como Calais, Nice-Genoa, Tours, Basel-Freiburg, Lucera no sul de Itália, ou Zenta na actual Sérvia húngara. E, quem se poderia esquecer de Ramsgate-to-Hastings, o maior campo hoje em existência, ao longo da costa do Canal no sul de Inglaterra? Este campo, porém, já não é uma questão europeia, desde que UK e Irlanda cortaram em definitivo todos os laços que ainda os pudessem prender à UE, para se juntarem à emergente Commonwealth Atlântica. Uma parte desta Commonwealth é a aceleração da integração Can-EUA-Mex, que foi discretamente iniciada com NAFTA e com a Security and Prosperity Partnership de 2005, e reforçada com a actualização da NAFTA na era Trump. Essa integração é agora vista como essencial para controlar a imigração em massa proveniente de uma continuamente mais desagregada América Latina. Os principais cordões de segurança estão na fronteira México-Guatemala, para onde todos os anos afluem milhões de seres humanos, e que é hoje uma área controlada por forças americanas. De resto, todo o território para cima, ao longo do México e dos estados do sul dos EUA é continuamente mais militarizado e caótico. A visão de Martin Luther King para o Mississipi, a de uma terra renascida como paraíso de liberdade, terá assim de esperar.

Para tudo isto contou bastante o facto de, nos EUA, darwinismo social britânico ter derrotado a Constituição, fascismo corporate militarizado, a República, e alienação teocrática evangélica, a Cristandade.

A EUROPA é hoje composta de estados-nação economicamente desmantelados e continuamente mais autocráticos, sob a égide de uma fria, mecânica e eficiente tecnocracia europeia.

“orla exterior” desta Nova Europa é um amplo perímetro militarizado que vai dos Bálticos à linha Varsóvia-Lviv-Odessa, abrange a costa ocidental do Mar Negro e as áreas estabilizadas do Cáucaso, do Levante, do Sinai e do Maghreb. Porém, a linha mais securitizada é claramente a “fronteira interior” que vai do Mediterrâneo às àreas mais militarizadas dos Balcãs ocidentais, do norte de Itália, da Áustria e da República Checa, e daí prossegue para o mar Báltico ao longo da linha de Wroclaw-Poznan.

TUDO ISTO está, claro, a acontecer num mundo que se tornou extraordinariamente turbulento. A maior parte dos epicentros tectónicos de onde a turbulência emana para o resto do planeta, como ondas de choque, estão situados ao longo do “Crescente de Crise”: o crescente geopolítico que vai da África subsahariana ao norte de África, daí prossegue para Médio Oriente, Cáucaso e Ásia Central, de onde desce para o Sul e para o Sudeste Asiático, até ir mergulhar no mar da China. Àreas inteiras ao longo deste crescente são sistematicamente entregues a desestabilizações externas, crises sociais, choques económicos, conflitos sectários, colapsos societais.

A divisão guiada do mundo islâmico entre sectarismo Sunni e Shia criou algumas das piores atrocidades humanitárias de sempre, e continua bem presente. Os choques económicos globais dos anos 20 e 30, e as convulsões que se lhes seguiram, abriram todo um novo capítulo na história do século 21. O caos no norte de África, a crise da Indonésia, e os conflitos étnicos ao longo da Ásia Central e do sul da Rússia foram graves demais. A Rússia saiu disso ainda mais fraca, mas também mais militarística e agressiva, e está agora em constante atricção com uma China que se projecta como potência económica e cultural ao longo da Eurásia – enquanto se desagrega domesticamente sob crise étnica e social permanente. E, o que dizer do colapso da Península Arábica naquilo que é agora?, uma Arábia particionada em inúmeros territórios tribais, emiratos, repúblicas teocráticas, microestados produtores de petróleo. Algo similar ao que hoje se pode ver ao longo de toda a África Oriental e Central. África continua, de resto, a ser África – o continente mais agredido, assaltado e pilhado do mundo.

E, é um facto que agora, e desde a catástrofe de Austin, há o sempre presente espectro de terrorismo nuclear.

SE TIVESSE HAVIDO AMOR E HUMANIDADE, as coisas teriam sido bem diferentes, e bem melhores. E, se as economias do planeta tivessem sido centradas em desenvolvimento, na universalização das classes médias, e na melhoria contínua do nível de vida, por contraste com dinheiro e destruição, o futuro não teria sido adiado por sabe-se lá mais quantas gerações.

Rui Garrido