A desigualdade transparece no SNS
É de louvar a coragem de quem teve a iniciativa de aplicar a tão aclamada “transparência” ao sector da saúde em Portugal. Aposto que o Sr. Ministro da Saúde sente um grande orgulho pelo facto de qualquer cidadão com acesso à net conseguir, com meia dúzia de clicks, ficar a par do estado da arte nos diversos pontos do país (quero dizer, Portugal continental…). Basta ir a www.sns.gov.pt e navegar pela quantidade incrível de informações que se tem ao dispor – isso, sim, é de elogiar. No entanto, acontece que um cidadão hipotético que tenha ficado todo contente por finalmente ter acesso à informação que lhe é devida como utente do SNS e como contribuinte (no sentido de “prestação de contas” e do que o Estado faz com o dinheiro dos seus impostos), facilmente chega à conclusão de que ou tem a sorte de viver no norte ou o azar de viver no sul do país. Não digo isto com o intuito de incendiar as rivalidades entre a “nação nortenha” e a capital. O que quero na verdade é realçar as desigualdades abismais no acesso à saúde entre regiões (ARS) de um país tão pequeno como o nosso. O acesso à saúde não depende apenas de ter ou não médico atribuído, até porque os médicos não são a única peça da engrenagem que compõe os cuidados de saúde, mas na verdade é frequente essa espécie de discriminação entre os que têm médico e os que, pertencendo a uma classe diferente da sociedade (cidadãos de segunda), se encontram nas listas de utentes sem médico (como se isso estivesse nas mãos de cada um e pudéssemos, utentes, “fazer por isso”). Para os “felizardos” que pertencem a uma lista de 1900 utentes entregues a um só médico já não é muito fácil (é só fazer as contas para perceber que não dá muitas consultas a cada um por ano). Imagine-se então como é o acesso à saúde para quem se encontra numa lista de 10 ou 15 mil pessoas sem médico atribuído. Para esses cidadãos de segunda, marcar uma consulta no Centro de Saúde onde estão inscritos é uma aventura; ficam dependentes de haver “consultas para os doentes sem médico”, como se de caridade se tratasse. Há unidades em que os médicos que têm as listas de 1900 utentes fazem umas horas desta caridade (umas vezes roubando tempo aos seus utentes e outras fazendo horas extra pagas a preço da uva mijona). Noutras unidades, as consultas aos utentes sem médico são feitas por médicos tarefeiros (uns altamente competentes e outros nem por isso, mas como é para ver “os sem médico”…). Sei que pareço um pouco cáustica – resultado de vários anos de indignação. Considero que não existem cidadãos de primeira e de segunda categoria; o que existe são cidadãos com mais ou menos direitos. Esta desigualdade injusta (chamada iniquidade) não é apenas triste, mas também inconstitucional.
Será que sou eu que tenho dificuldades na interpretação da Constituição da República? Ou as coisas estão realmente mal? Que eu saiba, o artigo 64 é válido para todo o território nacional. Para quem não sabe, o 64 é o que diz que “Todos têm direito à protecção da saúde e o dever de a defender e promover” e que “Para assegurar o direito à protecção da saúde, incumbe prioritariamente ao Estado: a) Garantir o acesso de todos os cidadãos, independentemente da sua condição económica, aos cuidados da medicina preventiva, curativa e de reabilitação; b) Garantir uma racional e eficiente cobertura de todo o país em recursos humanos e unidades de saúde.”
Actualmente, estão cerca de 10 milhões de utentes inscritos no SNS, dos quais aproximadamente 850 mil não têm médico atribuído, apesar de se ouvir alguém dizer todos os dias na televisão ou na rádio que há médicos a mais. Enquanto na ARS Norte cerca de 76 mil utentes não tem médico de família atribuído, já na ARS Lisboa e Vale do Tejo (LVT) esse valor ultrapassa os 650 mil. No mesmo site que referi acima, pode-se ver que as necessidades de médicos são muito díspares entre ARS (dados de 18/05/2017): no Alentejo faltam 8; no Algarve 43; no Centro 23; em LVT 375; no Norte 44; total nacional de 493. Faça-se aqui um pequeno parêntesis para ressalvar que o Alentejo não está tão bem como parece quando se olha para os números, devido à dispersão geográfica dos seus habitantes (apesar de ter poucos cidadãos sem médico, muitos deles têm dificuldade em deslocar-se até à Unidade de Saúde mais próxima).
Por todos os motivos expostos neste texto, aqueles cartazes que anunciam a descida do défice para 2.1% chateiam-me, se ao mesmo tempo existem tantos problemas no país, sendo as desigualdades em saúde um dos mais graves pois compromete tudo o resto (afectando até a economia, vejam só!).