CHAMEMOS-LHE O QUE É, A LEI DE CENSURA: um retorno subtil (esperemos que inadvertido) ao tipo de legislação que, durante o regime fascista de 1926-1974, sufocava a liberdade de expressão e de pensamento em Portugal. Falamos, claro, do Artigo 6: o artigo 6º da alegada Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital, a Lei 27/2021, que foi aprovada sem votos contra no Parlamento em Abril passado, e, depois,promulgada pelo PR a 8 de Maio. O Artigo 6 diz, claro, que o estado vai «proteger a sociedade contra pessoas singulares ou coletivas, de jure ou de facto, que produzam, reproduzam ou difundam narrativa considerada desinformação», sendo que “desinformação” é aqui definida como «toda a narrativa comprovadamente falsa ou enganadora criada, apresentada e divulgada para obter vantagens económicas ou para enganar deliberadamente o público, e que seja suscetível de causar um prejuízo público, nomeadamente ameaça aos processos políticos democráticos, aos processos de elaboração de políticas públicas e a bens públicos».
A questão impõe-se: sob esta definição, lata e vaga, quais as narrativas que (sob o spin adequado) são imunes de ser entendidas como “desinformação”? Já que o facto é que, sob a adequada distorção, toda e qualquer narrativa, por mais válida que seja, pode ser rotulada de “enganadora”, ou até “falsa”, ou como representando, desta ou daquela forma, uma alegada “ameaça” a isto ou àquilo no domínio público. É tudo uma questão de gestão de percepções.
Depois, a lei prossegue para dizer que é encorajada a denúnciade alegada “desinformação”, e que haverá sanções para a publicação da mesma.
Como António Barreto disse, no Público, o Artigo 6 é algo «inédito na democracia e só parecido com algo em vigor durante a ditadura salazarista… o Estado prepara-se para pagar o funcionamento de uma rede infernal de delação, supervisão e vigilância, enquadrada num esforço estatal de defesa da verdade, da narrativa autêntica e de elevação moral. Salazar não faria melhor!». E, Pacheco Pereira acrescentou, na Sábado, que a nova lei é nada menos que «uma institucionalização da censura», a exigir «o mais completo repúdio».
A própria ERC, que é a entidade que, sob o Artigo 6, é tornada na reguladora para este domínio, veio repudiar o mesmo Artigo 6, alertando para o facto de que o mesmo poderá vir a conduzir a graves limitações da liberdade de expressão.
TODA E QUALQUER LEI DE CENSURA AO LONGO DA HISTÓRIA HUMANA foi, sempre e invariavelmente, e tal como esta, criada “para proteger a sociedade” e “salvaguardar a verdade” de alegada “desinformação”, cuja disseminação seria alegadamente “passível de causar prejuízos públicos”, ou talvez até de “incitar ao caos e à desordem”. Foi sempre esta exacta rotina. Como escrito em 2008 por Alfredo Caldeira, da Fundação Soares*, «a imposição da censura e de práticas censórias foi [sempre] justificada» pela «defesa dos interesses dos cidadãos». Por exemplo, a censura salazarista propunha-se a «evitar “a perversão da opinião pública”», e a defender essa opinião pública de todos os factores que a «desorientem contra a verdade, a justiça, a boa administração e o bem comum». Não é assim tão diferente de certas coisas que se dizem hoje em dia, pois não? Com efeito, e ainda segundo Caldeira, «Nos nossos dias», são frequentes as vozes «que pedem a censura na Internet», e «tudo é feito, mais uma vez, em “nossa” defesa», e com base em «vagos conceitos», que «visam impedir o acesso de cada cidadão à pluralidade da informação e da expressão do pensamento». Esse será o resultado inevitável do Artigo 6, que é nada menos que um insulto às conquistas do 25 de Abril de 1974.
CABE AGORA AO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL PROTEGER A DEMOCRACIA. O Sindicato dos Jornalistas e a CCPJ pediram a avaliação da constitucionalidade do Artigo 6, e o mesmo foi feito pelo próprio Marcelo Rebelo de Sousa que, não obstante ter promulgado a alegada Carta a 8 de Maio, apenas mês e meio depois, enviou o Artigo 6 para o Tribunal Constitucional(TC), para fiscalização abstracta sucessiva do mesmo. Os motivos apresentados pelo PR são os truísmos de que o Artigo 6 poderá incorrer em «violação do direito à liberdade de expressão… do regime material dos direitos, liberdades e garantias [e do princípio da proporcionalidade dele decorrente]… do princípio de Estado de direito… da reserva de lei parlamentar… todos da Constituição da República Portuguesa».
Na sua solicitação ao TC, o PR acrescenta, com toda a razão, que a lei conteria «um conjunto de conceitos vagos e indeterminados», como sejam os conceitos de «narrativa comprovadamente falsa ou enganadora», ou «ameaça… aos processos de elaboração de políticas públicas».
O Artigo 6 assenta de tal modo em conceitos altamente vagos e subjectivos, que vai ao ponto de estabelecer que será avaliada a intenção de quem publica alegada “desinformação”; se a pessoa está a tentar «enganar deliberadamente o público», ou não. Como é que é possível saber isto sem uma confissão assinada pela própria pessoa? Por palpites e intuições, talvez?
Os legisladores portugueses pretenderam mesmo incorrer nestas coisas? Talvez não, e espero que não, mas o facto é que incorreram nelas, e isso é muito grave.
E ainda, o que vai ser feito com esta ideia de “desinformação”? O Artigo 6 entende-a como uma espécie de infracção. Portanto, será tornada num crime previsto pelo Código Penal? Isso, claro, implicaria virar o direito penal português de pernas para o ar, e, nisto, investir oficialmente o sistema judicial na prática de censura. Ou, será que “desinformação” vai ser uma espécie de “infracção extra-judicial”, a ser investigada, julgada e sancionada por entidades extra-judiciais? Pois bem, isso criaria uma espécie de ‘sistema judicial informal’, algo que é completamente inadmissível num Estado de Direito.
Em qualquer dos casos, convém que as instituições do estado português tenham bem em mente que censura pode muito facilmente ser, ou vir a ser, considerada um alto crime contra a Humanidade.
O ARTIGO 6 DIZ AINDA QUE o estado passa a incentivar «a atribuição de selos de qualidade por entidades fidedignas». Esta proposta é inenarrável, e é tão fácil antever a sua materialização na forma de selos de aprovação para os bons rapazes e para as boas raparigas. Já agora, que jornalista digno desse nome quereria andar por aí a receber “selos de qualidade oficial”?
MAS, UMA DAS PASSAGENS MAIS INTERESSANTES do Artigo 6 é a de que o estado «apoia a criação de estruturas de verificação de factos por órgãos de comunicação social devidamente registados». Por outras palavras, sob a materialização desta lei, o estado é feito colocar o seu peso institucional por detrás de estruturas de “verificação de factos” (ou, “fact-checking”), que usufruirão, assim, de uma espécie de autoridade institucional para proclamar o que é “verdade”, e decretar o que é “mentira” (ou, na linguagem aqui usada, “desinformação”).
Creio ser auto-evidente que isto é inaceitável.
Depois, há ainda o facto de que fact-checking é o exercício mais subjectivo do mundo: depende do tipo de investigação que se conduz, dos métodos usados, das fontes a que se acedem, da qualidade da investigação, da honestidade intelectual das pessoas, etc. Quais são, portanto, as garantias de que estes fact-checkers serão pessoas suficientemente qualificadas (e honestas) para a função? E, há garantias de que não venham a sobrepor preferências ideológicas ou religiosas, a qualquer forma sequer vagamente válida de ‘verificação de factos’?
Para além do mais, estes fact-checkers não vão ser expostos a escrutínio democrático, e não parece credível (por factores logísticos), que venham alguma vez a ser compelidos à total transparência e escrutínio público das suas actividades. Portanto, quais são as garantias que se terão em relação a estas pessoas, às suas afiliações, e a quaisquer interesses investidos que possam ter?
E ainda, que tipo de organizações estarão envolvidas na tal ‘verificação de factos’? O preâmbulo do projecto de lei884/XIV/2ª, entretanto criado pelo PS, especifica que isso «deve caber, por inteiro, a entidades privadas», também sendo especificamente contempladas «pessoas coletivas sem fins lucrativos que se dediquem à promoção e defesa do disposto» na nova legislação.
Onde é que estas organizações obterão financiamento para o desenvolvimento das suas actividades de ‘verificação de factos’? Com efeito, estas organizações, e os seus directores, e os seus colaboradores, vão precisar de fundos para se dedicarem à nobre missão da defesa da verdade.
Será que haverá financiamento estatal directo? À primeira vista, parece ser impossível ter o estado a financiar entidades que têm o propósito de decretar o que é ou deixa de ser “a verdade”; mas, por vezes, tudo é possível.
Porém, partamos do pressuposto, mais provável, de que o financiamento terá de vir de outro lado qualquer. Portanto, se estas organizações vão precisar de fundos de outro lado, isso quer dizer que terão necessariamente de obtê-los junto de doadores privados e de financiadores institucionais. É com base nisso que levarão a cabo as suas actividades.
Quais os problemas com isto?
Bom, o primeiro problema é por demais explícito. É inevitável que estas coisas tendam a responder ao dinheiro que as sustém; por outras palavras, a patronos essenciais. Com toda a probabilidade, tenderão facilmente a tornar-se em veículos privatizados de influência para os interesses que as mantêm à tona. Afinal, e como diz o provérbio, when money talks, morality walks.
Portanto, não só o estado estará a dar legitimidade institucional a entidades que se arrogarão autoridade sobre “a verdade”, como, em muitos casos, poderá estar a fazê-lo em prol do avanço de certos interesses estabelecidos, que estarão interessados em promover informação que lhes é conveniente, e em suprimir informação que lhes é inconveniente.
Depois, há também o facto de que estamos, aqui, a falar da transformação de actividade censória em toda uma nova e rentável área de actividade. Vai haver financiamentos a ganhar com tudo isto, e, como em todas as outras áreas de actividade, esses financiamentos serão condicionais à produtividade, factual ou potencial: quanto mais informação for identificada e purgada, e quanto mais informação houver para identificar e purgar, tanto maior o cash flow para o sector.
É, portanto, muito fácil, no longo prazo, cair numa situação em que o sector se auto-sustém através da expansão contínua e ininterrupta do leque da informação a purgar, e do conhecimento a destruir. Daqui sairia uma máquina de comer que só é fácil de conceber por quem já teve experiência directa com a viciosidade mecânica de um sistema totalitário.
A PRESIDIR A TODO ESTE EXERCÍCIO EM SURREALISMO legislativo, a ideia puritana de “verdade pura e inquestionável”: a verdade, da qual não há desvios, e que é determinada por autoridades e por alegados especialistas. Esta ideia é, claro, a própria antítese de liberdade de expressão e de pensamento numa sociedade livre, e é, adicionalmente, uma ideia filosoficamente bancarrota e cientificamente indefensável. Sem querer tornar isto num debate epistemológico, o facto é que, neste mundo, a única verdade que é cognoscível ao ser humano são aproximações à verdade, que são melhores ou piores consoante sejam mais ou menos baseadas em factos demonstráveis. E, é precisamente pela diversidade da informação, e pelo cruzamento da informação, e pelo livre e aberto escrutínio das ideias, que se determina qualquer forma relevante de (aproximação à) verdade. Em tudo isto, o papel essencial do questionamento e do contraditório: é pelo confronto com contraditório racional que as más ideias são invalidadas, e que as ideias razoáveis são actualizadas e melhoradas, ao longo do contínuo e ininterrupto processo histórico de evolução das ideias e dos entendimentos que se tem do mundo. E, é este processo de contradição, que só é possível numa sociedade pluralista e diversa, livre e aberta, que qualquer exercício censório é elaborado para extinguir.
Não há verdades inquestionáveis; o melhor que o ser humano consegue encontrar são ideias que ainda não foram convincentemente contraditas, e essa é a postura da ciência e da Razão, que não toleram censura.
ESTE ARTIGO 6 foi aprovado a 8 de Abril sem quaisquer votos contra, no Parlamento. Como é isto possível? PS e BE votaram a favor, PCP e PEV abstiveram-se. O que aconteceu à esquerda portuguesa? E, ao centro-direita, IL absteve-se e PSD e CDS votaram pelo Artigo 6. Os valores do liberalismo parlamentar eh?
Bom, em abono da verdade, mais tarde, IL, PCP, PEV, CDS, PSD, e ainda outros, tentaram regenerar-se, ao votar, sem sucesso, pela revogação do Artigo 6. Hoje, a actividade parlamentar à volta desta questão parece estar essencialmente reduzida à consideração de dois projectos para alteração do Artigo 6 (um do PAN, o outro do PS), sendo que qualquer um destes projectos é uma mera tentativa de emendar aquilo que não pode ser emendado. Simplesmente, descarte-se o Artigo 6 e, com ele, todas as medidas que postula. É assim tão fácil.
HÁ 10 ANOS ATRÁS, ESTA LEI TERIA LEVADO A MANIFESTAÇÕES em massa nas ruas, e a inflamada disputa nos média e na arena política. Hoje, em plena democracia, é-se confrontado com uma apatia plácida que talvez fizesse sentido sob Pinochet. O que aconteceu à sociedade?
O ARTIGO 6 ABRE AS PORTAS A CONSTANTES INFRACÇÕES de liberdades, direitos e garantias, e facilmente tenderá a levar às consequências que, ao longo da História, são típicas para fenómenos censórios.
Por outras palavras, à sanitização silenciosa (primeiro ocasional, depois frequente, depois sistemática) de informação inconveniente e de opiniões desalinhadas—com o espaço de ‘aceitabilidade’ a ser tornado continuamente mais estreito. À concomitante imposição de informação “segura”, ou simplesmente autorizada. À intimidação do pensamento independente. À proibição implícita da discordância e, com efeito, do diferente. Em especial, àproscrição de tudo aquilo que vexa o status quo: de tudo aquilo que o expõe, em público, como incompetente e inepto para exercer poder; de tudo aquilo que diz, “o rei vai nu”.
Da mesma forma, tenderá a levar à extinção gradual da participação, do pluralismo, e da diversidade. E, à criação de uma cultura de medo e autocensura, com a transformação da sociedade numa echo chamber de banalidades aceitáveis—numa câmara trancada onde as pessoas são reduzidas a retransmissores de nonsense aceitável, situacionista, e bem-educado. Mais cedo ou mais tarde, não tenho dúvidas, esta lei será usada para ir atrás de muitos dos que trabalharam para a fazer aprovar, em especial à esquerda.
E, em particular, este tipo de mecanismo tenderá a ser usado, por interesses poderosos (não necessariamente pelo estado, que já nem sequer existe realmente, e que tenderá apenas a suster o ambiente regulatório), para purgar informação indesejada, calar vozes dissonantes, disciplinar pessoas, estabelecer “consensos normativos” e impor regras de conformidade compulsiva.
Tanta desta destruição de intelecto e de potencial já está a acontecer nos dias de hoje, ou não? Portanto, porquê acelerar o processo através deste tipo de lei? Porque é que a democracia liberal há de adoptar o chic inconsequente da borboleta alucinadaque esvoaça de encontro às chamas?
As chamas queimam, e matam.
É PRECISO LIDAR COM a confusão pós-moderna que hoje grassa ao longo de segmentos da sociedade. Os estados constitucionais e democráticos, quando o são, nunca proíbem discurso, nem liberdade; proíbem a proibição destas coisas. Censura é inímica a liberdade e a democracia. É inímica a vida.
A ideia é realmente a de combater a má informação e a demagogia? Pois bem, se há algo que os últimos 100 anos nos ensinaram é que, tal como as trevas são dissipadas pela luz, a má informação e a demagogia são dissipadas por democracia. Por mais, e melhor, e mais diversa informação. Pelo livre e aberto debate público. Pelo cultivo de uma cidadania culta e informada, independente e participativa, dotada de discernimento e de espírito crítico.
Rui Miguel Garrido
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* Alfredo Caldeira, “A censura a que temos direito”, Media & Jornalismo, (12) 2008, pp. 9-18