No passado dia 14 de maio, vivemos um inédito dia de oração, jejum e solidariedade pelo fim da pandemia do Covid-19 que juntou crentes de várias religiões e, de um modo especial, cristãos e muçulmanos. A iniciativa partiu do “Alto Comité para a Fraternidade Humana”, um organismo que pretende concretizar os apelos lançados pelo histórico Documento sobre a Fraternidade em prol da Paz Mundial e da Convivência Comum, assinado pelo Papa Francisco e pela máxima autoridade do Islão sunita, o Grande Imã da universidade Al-Azhar, Ahmad Al-Tayyeb, em Abu Dhabi, a 4 de fevereiro de 2019.
Quase em simultâneo, recebi, porém, através da Fundação “Ajuda à Igreja que Sofre”, notícias que poderiam levar a perder a esperança no diálogo e unidade entre cristãos e muçulmanos. A de que a Comissão Justiça e Paz do Paquistão denuncia que alguns dirigentes muçulmanos apelam à recusa do fornecimento a cristãos e membros de outras minorias religiosas da ajuda urgente relacionada com a pandemia do Covid-19. E a de que a jovem nigeriana Leah Sharibu, sequestrada pelo Boko Haram desde há dois anos, continua em cativeiro por se recusar a renegar a sua fé cristã.
Situações como estas (que certamente não podem ser ignoradas em nome das necessidades do diálogo) servem de pretexto a quem considera os relacionamentos entres cristãos e muçulmanos necessariamente marcados (como sucedeu em séculos passados) pelo conflito.
Hoje, mais do que nunca, a globalização e os fluxos migratórios são fenómenos incontornáveis que colocam lado a lado, inevitavelmente, pessoas de cultura cristã ou ocidental e de cultura islâmica. Tudo o que possa favorecer a construção de pontes entre elas só pode favorecer a paz e a harmonia das nossas sociedades europeias e do mundo em geral.
É, precisamente, por isso que o referido Documento de Abu Dhabi é tão importante. A partir dele, pode gerar-se uma aliança entre cristãos e muçulmanos que acreditam na paz, na fraternidade universal e na liberdade religiosa, rejeitando qualquer instrumentalização da religião para justificar a violência. Eis o que afirma a esse respeito:
«(…) as religiões nunca incitam à guerra e não solicitam sentimentos de ódio, hostilidade, extremismo, nem convidam à violência ou ao derramamento de sangue. Estas calamidades são fruto de desvio dos ensinamentos religiosos, do uso político das religiões e também das interpretações de grupos de homens de religião que abusaram – nalgumas fases da história – da influência do sentimento religioso sobre os corações dos homens para os levar à realização daquilo que não tem nada a ver com a verdade da religião, para alcançar fins políticos e económicos mundanos e míopes.»
Afirma este documento o valor da liberdade religiosa, rejeitando «o facto de forçar as pessoas a aderir a uma determinada religião» (o que – não podemos esquecer – sucede em países onde são punidas as conversões do Islão ao cristianismo). E sobre o tratamento das minorias religiosas (como são os cristãos em países de tradição islâmica):
«O conceito de cidadania baseia-se na igualdade dos direitos e dos deveres, sob cuja sombra todos gozam da justiça. Por isso, é necessário empenhar-se por estabelecer nas nossas sociedades o conceito de cidadania plena e renunciar ao uso discriminatório do termo minorias, que traz consigo as sementes de se sentir isolado e da inferioridade; isto prepara o terreno para as hostilidades e a discórdia e subtrai as conquistas e os direitos religiosos e civis de alguns cidadãos, discriminando-os.»
Parece-me que este Documento sobre a Fraternidade em prol da Paz Mundial e da Convivência Comum é uma eloquente resposta à tese da inevitabilidade do conflito de civilizações. Mostra que a história conflitual do passado não tem necessariamente de repetir-se no futuro. Disse, a propósito, o Papa Francisco: «ou construímos juntos o futuro, ou não haverá futuro».
Pedro Vaz Patto
No comments!
There are no comments yet, but you can be first to comment this article.