​É habitual associar a legalização do aborto aos direitos da mulher. A recente resolução do Parlamento Europeu sobre a «situação da saúde e direitos sexuais e reprodutivos na União Europeia» (baseada no polémico relatório Matic) chega a afirmar que a proibição do aborto é «uma forma de violência de género». Durante a discussão desta resolução ouviram-se, dos seus partidários, frases como estas: «Não há igualdade de género sem direito universal ao aborto»; «Nós, feministas, sabemos que temos de lutar pelo direito de domínio sobre o nosso corpo e a nossa sexualidade» (também com referência ao aborto).

​Ao ler estas afirmações, que não representam nenhuma novidade, não pude deixar de as associar a outras notícias recentes.

​Um artigo da revista médica The Lancet Global Health de 8 de abril de 2021, revelava que nos últimos trinta anos o aborto seletivo eliminou vinte e dois milhões de meninas. Essas meninas não chegaram a nascer por serem do sexo feminino e devido à prática do aborto. Esse número não tem descido, aumentou sessenta por cento entre 2007 e 2016.

​A revista Economist abordou este fenómeno numa reportagem de 2010 (onde falava em “gendercide”) e numa outra de 2017, dando a entender que o fenómeno tenderia a diminuir. Mas tal não sucedeu, como revela o referido artigo da The Lancet Global Health.

O Fundo para as Nações Unidas para a População (U.N.F.P.A.), muito criticado pelas suas posições alegadamente favoráveis ao aborto em geral, fala em cento e quarenta milhões de mulheres em falta porque vítimas do aborto seletivo. Essa realidade reflete a persistência do inferior estatuto social da mulher e está na origem de fenómenos de violência e tráfico de pessoas que vitimam a mulher e agravam ainda mais esse estatuto de inferioridade. 

Os grupos étnicos onde esta prática é mais difundida vão-se espalhando por vários países e, assim, ela deixou de estar circunscrita a áreas determinadas. Por isso, foi recentemente apresentada no Parlamento do Canadá uma proposta de proibição do aborto seletivo em função do sexo. Essa proposta foi rejeitada por larga maioria, onde se incluíram até deputados do Partido Conservador, de onde ela partiu. Uma proposta semelhante já havia sido rejeitada nesse Parlamento em 2012.

A rejeição desta proposta não surpreende se considerarmos os pressupostos que geralmente subjazem à legalização do aborto e que voltaram a ser invocados a propósito do relatório Matic e da resolução do Parlamento Europeu que nele se baseou. Outras propostas como essa apresentada no Parlamento do Canadá têm sido igualmente rejeitadas por partidários da legalização do aborto. Se o aborto é, tão só, uma questão de livre escolhada mulher, qualquer restrição a essa liberdade seria inaceitável. Se é uma questão de domínio da mulher sobre o seu próprio corpo (como se dizia há cinquenta anos e voltou a ouvir-se, agora no Parlamento Europeu), o embrião e o feto, como partes desse corpo, não são merecedores de proteção. Se o aborto é um suposto direito humano seja qual for o seu motivo (como pretende a resolução do Parlamento Europeu agora aprovada), até um motivo discriminatório como este deve ser aceite (como já é aceite, desde há muito, uma discriminação igualmente grave, que vitima os nascituros portadores de deficiência, também eles vítima de outro tipo de aborto seletivo). De resto, sendo o aborto livre e imotivado, será sempre difícil detetar à partida e isoladamente um aborto seletivo em função do sexo (pode ser sempre ocultado o seu motivo) e esse facto explica a geral ineficácia das proibições desse tipo de aborto (proibições que vigoram na Índia).

Na verdade, só uma proibição geral do aborto (proibição que a referida resolução do Parlamento Europeu considera «uma forma de violência de género») poderá evitar a prática do aborto seletivo em função do sexo.

Poderá dizer-se que estamos perante uma prática com raízes culturais persistentes e que só atacando tais raízes culturais poderá ser eliminada. É verdade, mas não pode negar-se que é o facto de o aborto ser facilitado que contribui para que ela persista e até que se intensifique, precisamente à medida que a prática do aborto é legalizada e facilitada.

Não consigo conceber uma mais grave discriminação da mulher praticada no mundo de hoje: que a tantos milhões de seres humanos do sexo feminino, por causa desse seu sexo, seja negado o primeiro dos direitos, o direito à vida. Esses milhões de mulheres em falta no mundo de hoje são vítimas do aborto. Se olharmos para esta realidade, não poderemos, certamente, associar, como fez o Parlamento de Estrasburgo, o aborto aos direitos das mulheres.

Pedro Vaz Patto

Juiz